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No primeiro dia de agosto de 2020 a Lua se encontrava aos 20 graus de Capricórnio e fazia conjunção com Júpiter (20 graus) e Saturno (27 graus). Acontecimento esse muito anunciado na mídia e em sites de Astrologia acompanhado de longos comentários.

Conceição Soares Beltrão[1]

A Negação da Existência do Deus Hades

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Após inúmeras notícias e trocas de informações entre amigos, busquei as posições planetárias na efeméride. Constatei que, além desses planetas nessa conjunção, havia outro planeta integrando o momento astrológico, a saber: Plutão. Este planeta estava posicionado aos 23 graus, também de Capricórnio, assim como Júpiter e Saturno! Aliás, Plutão estava muito mais próximo da Lua e de Júpiter do que o próprio Saturno, centro de todos os comentários!

Isso desencadeou em mim uma inquietação. Não encontrei motivos que justificassem não constar naquele momento, em nenhum dos tantos comentários, essa forte presença de Plutão – o Deus Hades! Então pensei: qual o motivo de não incluírem Plutão nessa conjunção? Já que ele está muito mais próximo da Lua e de Júpiter do que o próprio Saturno. É nisso que centralizo meus comentários.

Consultei vários sites de Astronomia, Astrofísica e Astrologia, constatando não haver em nenhum deles, nem mesmo a mínima alusão, sobre a posição de Plutão nesse fenômeno. Portanto, deduzi que isso ocorreu devido ao fato de Plutão não ser mais considerado planeta desde 2006! Isto é, a razão científica julgou que Plutão não preenchia os atuais requisitos para que fosse considerado planeta. Portanto, como deixou de ser considerado planeta, as características até então a ele atribuídas também foram desconsideradas. É concebível que sites de Astronomia, Astrofísica,  ainda, o mundo acadêmico e científico não mencionar esse fato, justamente, por não considerarem mais Plutão como um planeta. Considero ser a Astrologia fundada no mundo arquetípico e não no universo astronômico, fisicamente identificado, determinado e classificado. Para a chamada ciência, a Lua é considerada um satélite da Terra, mas na Astrologia ela é considerada planeta. Na Astrologia, consideramos um horizonte imaginário! Assim sendo, não podemos nos basear nos corpos celestes, tal como classificados na Astrofísica, na Astronomia e assim por diante. A origem do conhecimento astrológico se une à origem da história do próprio humano. Jung se refere à Astrologia como sendo a soma de todo o conhecimento psicológico da antiguidade.

 

Mas, por que será que sites de Astrologia, da mesma forma que os sites científicos, não referiram a presença de Plutão nessa conjunção? Nem os astrólogos consideraram significativa a presença de Plutão nesse evento astrológico?

 

Passei para outro estado emocional e comecei a me sentir assustada com o que se configura pelo silêncio em relação à posição de Plutão. Imediatamente, lembrei-me das preocupações de Jung e von Franz em relação a necessidade da ‘união dos opostos’: Luz e Sombra, Vida e Morte, Bem e Mal!

 

Os últimos escritos de Jung, como de von Franz, enfatizam a urgência da integração da ‘sombra’. Cito Jung em ‘Memórias, Sonhos, Reflexões’:

“À luz seguiu-se a sombra, o outro lado do Criador. Este desenvolvimento atinge o ponto culminante do século XX. O mundo cristão confronta-se agora com o princípio do mal, isto é, com a injustiça, a tirania, a mentira, a escravidão e a opressão das consciências. Se essa manifestação inequívoca do mal parecia ter atingido uma forma permanente no povo russo, foi entre os alemães que eclodiu como o primeiro incêndio gigantesco e devastador. E assim tornou-se evidente e irrefutável a que alto grau o cristianismo do século XX fora minado e esvaziado. Em face disso, o mal não poderia mais ser banalizado pelo eufemismo da privatio boni (privação do bem). O mal tornou-se uma realidade determinante. Não é mais possível desembaraçar-se dele por meio de uma simples troca de nomes; é necessário aprender a conviver com ele, pois ele quer participar da vida. Até a hora atual, ainda é inconcebível como isso será possível, sem maiores danos.”[2]

Von Franz categoricamente exclamou:

“ou nós trabalhamos para reconhecer e recolher o mal em nós mesmos, ou haverá uma destruição total.”[3]

No final de sua vida, Jung ressaltou a importância da restauração da ‘função sentimento’ como forma de valorização da consciência, dos valores humanos e da nossa participação construtiva na vida. A atual situação geopolítica e econômica nos confina e nos lança para cenários imprevisíveis e mesmo insuportáveis. Nossa capacidade de destruição passou dos limites e como Jung referiu hoje o ser humano possui um poder em suas mãos, sem a maturidade psíquica necessária exigida para isso. Vivemos assombrados com a possibilidade de uma guerra atômica capaz de destruir toda a vida na Terra, e a respeito disso podemos citar von Franz:

“por uma sombra de completa tolice, o homem vem e destrói toda a vida na Terra.”[4]

 

Todo o poder destrutivo está projetado para fora em proporções imprevisíveis. Lançar o mal individual no coletivo potencializa o poder destrutivo em proporções assustadoras. Temos vivido situações de destruição em massa por explosões produzidas por grupos extremistas, além do aumento de agressões de forma descontrolada. Todos os dias os noticiários estão repletos de fatos dessa ordem.

 

Neste sentido, a integração da sombra se faz necessária para não corrermos o risco de uma devastação total da vida no planeta. Pois, quando negamos o poder destrutivo presente em cada um de nós, lançamos inconscientemente este mal para o mundo externo, atribuindo-o a alguma pessoa ou a uma situação.

Assim, nosso lado obscuro, temido e negado, precisa ser identificado, confrontado, mantido e contido dentro de nós mesmos. Deveríamos ser capaz de segurar e suportar essa força destrutiva não permitindo que ultrapasse os limites de nosso corpo. O difícil é admitir em nós mesmos o poder destrutivo que percebemos em nosso opositor. Mas, somos tão indolentes quanto qualquer outro que o consideramos ser. Saber, enfim, que possuímos não apenas honestidade, mas que também somos capazes de atuar desonestamente. Não podemos negar uma realidade apenas pelo fato de sermos incapazes de percebê-la e compreendê-la! A racionalidade não suprime a força da realidade psíquica. A racionalidade nos cega e nos impõe aquilo que esta decidiu, unilateralmente, definir como ‘realidade’, e a essa última nós sucumbimos!

 

Portanto, o fato de Plutão não ter sido incluído na conjunção acima referida, em minha opinião, significa uma evidência contundente de um estado psíquico ao qual estamos expostos, a saber: a inconsciência do mal. A negação do lado sombrio configurado nesse fenômeno astrológico representa que, psiquicamente, um Arquétipo do Inconsciente Coletivo, o qual possui a representação do Deus que rege os processos obscuros da vida e da morte, foi banido, não foi considerado. No Olimpo, a Zeus coube o reino dos Céus, a

Poseidon o reino dos Mares e a Hades o Mundo dos Mortos, das Trevas, dos Infernos. O fato de não incluirmos Hades/Plutão nesta configuração astrológica, denuncia a negação desse conteúdo arquetípico presente em nossa psique inconsciente. Negar a existência desses atributos em nós mesmos não nos livra da terrível, silenciosa e tenebrosa influência que este Arquétipo exerce sobre nós. Muito pelo contrário, pois a negação de um conteúdo psíquico exacerba nossa vulnerabilidade frente a ele.

 

Portanto, visando evitar desagradáveis consequências decorrentes de nossa negação da ‘realidade psíquica’, deveríamos é incluir Plutão, não negar. Assim colocaríamos em evidência nossas tentativas de compreender os acontecimentos da realidade cotidiana, isto é, os elementos que constituem tais aspectos simbólicos em questão, como por exemplo, nesse atual acontecimento astrológico do primeiro dia de agosto, com a forte conjunção Lua, Júpiter, Plutão e Saturno em Capricórnio.

[1] Analista Junguiana; Diretora de Ensino e Pesquisa do Espaço Arte-Ciência (Porto Alegre); Dra em Literatura Comparada - UFRGS.

[2] Jung, C.G: Memórias, Sonhos, Reflexões – Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro; 13ª.edição; p.284.

[3] Entrevistas com Marie-Louise von Franz (no prelo pela Ed.Paulus).

[4] Ibidem.

‘o sonho da razão produz monstros’
Goya, 1799

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Le déni de l'existence du dieu Hadès

Conceição Soares Beltrão[1]

Le premier jour d'août 2020, la Lune était à 20 degrés du Capricorne et était en conjonction avec Jupiter (20 degrés) et Saturne (27 degrés). Cet événement a été annoncé dans les médias et sur les sites d'astrologie accompagné de longs commentaires.
Après d'innombrables nouvelles et échanges d'informations entre amis, j'ai cherché des positions planétaires lors de l'événement. J'ai

Version Française Elisa Freitas Machado [2] 

‘‘le sommeil de la raison produit des monstres’ Goya, 1799

trouvé qu'en plus de ces planètes dans cette conjonction, il y avait une autre planète intégrant le moment astrologique, à savoir: Pluton. Cette planète était positionnée à 23 degrés, Capricorne également, ainsi que Jupiter et Saturne! En fait, Pluton était beaucoup plus proche de la Lune et de Jupiter que Saturne elle-même, le centre de tous les commentaires!

 

Cela a déclenché une agitation en moi. Je n'ai trouvé aucune raison pour justifier de ne pas avoir à ce moment-là, dans aucun des nombreux commentaires, cette forte présence de Pluton - le Dieu Hadès! Puis j'ai pensé: quelle est la raison de ne pas inclure Pluton dans cette conjonction? Puisqu'il est beaucoup plus proche de la Lune et de Jupiter que Saturne lui-même. C'est sur cela que je centre mes commentaires.

 

J'ai consulté plusieurs sites d'astronomie, d'astrophysique et d'astrologie, notant qu'aucun d'entre eux, pas même le moindre indice, ne concernait la position de Pluton dans ce phénomène. J'en ai donc déduit que cela était dû au fait que Pluton n'est plus considéré comme une planète depuis 2006! Autrement dit, la raison scientifique croyait que Pluton ne répondait pas aux exigences actuelles pour qu'elle soit considérée comme une planète. Par conséquent, comme elle n'est plus considérée comme une planète, les caractéristiques qui lui étaient attribuées jusque-là ont également été ignorées. Il est concevable que l'astronomie, les sites d'astrophysique, pourtant, le monde académique et scientifique ne mentionnent pas ce fait, précisément parce qu'ils ne considèrent plus Pluton comme une planète.

 

Je considère que l'astrologie est fondée sur le monde archétypique et non sur l'univers astronomique, physiquement identifiée, déterminée et classée. Pour la soi-disant science, la Lune est considérée comme un satellite de la Terre, mais en astrologie, elle est considérée comme une planète. En astrologie, on considère un horizon imaginaire! Par conséquent, nous ne pouvons pas nous fier aux corps célestes, tels que classés en astrophysique, astronomie et ainsi de suite. L'origine de la connaissance astrologique rejoint l'origine de l'histoire de l'homme lui-même. Jung se réfère à l'astrologie comme la somme de toutes les connaissances psychologiques de l'antiquité.

 

Mais pourquoi les sites d'astrologie, comme les sites scientifiques, n'ont-ils pas mentionné la présence de Pluton dans cette conjonction? Les astrologues n'ont-ils même pas considéré la présence de Pluton dans cet événement astrologique comme significative?

 

Je suis entré dans un autre état émotionnel et j'ai commencé à avoir peur de ce qui est configuré par le silence par rapport à la position de Pluton. Immédiatement, je me suis souvenu des préoccupations de Jung et von Franz concernant la nécessité d'une «union des contraires»: Lumière et Ombre, Vie et Mort, Bien et Mal!

 

Les derniers écrits de Jung, comme ceux de von Franz, soulignent l'urgence d'intégrer «l'ombre». Je cite Jung dans "Memories, Dreams, Reflections":

«La lumière a été suivie par l'ombre, l'autre côté du Créateur. Ce développement atteint le point culminant du 20e siècle. Le monde chrétien est maintenant confronté au principe du mal, c'est-à-dire à l'injustice, à la tyrannie, au mensonge, à l'esclavage et à l'oppression des consciences. Si cette manifestation incontestable du mal semblait avoir pris une forme permanente chez le peuple russe, c'est chez les Allemands qu'elle a éclaté comme le premier incendie gigantesque et dévastateur. Et ainsi il est devenu évident et irréfutable à quel point le christianisme du XXe siècle avait été miné et vidé. Compte tenu de cela, le mal ne pouvait plus être banalisé par l'euphémisme de privatio boni (privation du bien). Le mal est devenu une réalité déterminante. Il n'est plus possible de s'en débarrasser en changeant simplement les noms; il faut apprendre à vivre avec lui, car il veut participer à la vie. À ce jour, il est encore inconcevable de savoir comment cela sera possible sans d'autres dommages. »2

Von Franz s'exclama catégoriquement:

«Soit nous travaillons pour reconnaître et collecter le mal en nous-mêmes, soit  il y aura une destruction totale».3

 

À la fin de sa vie, Jung a souligné l’importance de restaurer la

«fonction de sentiment» comme moyen de valoriser la conscience, les valeurs humaines et notre participation constructive à la vie. La situation géopolitique et économique actuelle nous confine et nous plonge dans des scénarios imprévisibles voire insupportables. Notre capacité de destruction a dépassé les limites et comme Jung l'a dit aujourd'hui, les êtres humains ont le pouvoir entre leurs mains, sans la maturité psychique nécessaire pour cela. Nous vivons avec stupéfaction face à la possibilité d'une guerre atomique capable de détruire toute vie sur Terre, et à ce sujet, nous pouvons citer von Franz:

 

"Par une ombre d’insensé totale, l'homme vient et détruit toute vie sur Terre."4

 

Toute la puissance destructrice est projetée dans des proportions imprévisibles. Lancer le mal individuel dans le collectif potentialise le pouvoir destructeur dans des proportions effrayantes. Nous avons connu des situations de destruction massive par des explosions produites par des groupes extrémistes, en plus de l'augmentation des agressions de manière incontrôlée. Chaque jour, les nouvelles sont remplies de faits de cet ordre.

 

En ce sens, l'intégration de l'ombre est nécessaire pour éviter le risque de dévastation totale de la vie sur la planète. Car, lorsque nous nions le pouvoir destructeur présent en chacun de nous, nous lançons inconsciemment ce mal dans le monde extérieur, en l'attribuant à quelqu'un ou à une situation. Ainsi, notre côté obscur, craint et nié, a besoin d'être identifié, confronté, maintenu et contenu en nous-mêmes. Nous devrions être capables de retenir et de soutenir cette force destructrice en ne lui permettant pas d'aller au-delà des limites de notre corps. Le plus difficile est d'admettre en nous la puissance destructrice que nous percevons chez notre adversaire. Mais nous sommes aussi paresseux que quiconque que nous considérons comme lui. Enfin, savoir que nous avons non seulement l'honnêteté, mais que nous sommes également capables d'agir de manière malhonnête. Nous ne pouvons nier une réalité simplement parce que nous sommes incapables de la percevoir et de la comprendre! La rationalité ne supprime pas la force de la réalité psychique. La rationalité nous aveugle et nous impose ce qu'elle a décidé unilatéralement de définir comme «réalité», et à cette dernière nous avons succombé!

 

Par conséquent, le fait que Pluton n'ait pas été inclus dans la conjonction mentionnée ci-dessus, à mon avis, signifie une preuve accablante d'un état psychique auquel nous sommes exposés, à savoir: l'inconscience du mal. Le déni du côté obscur configuré dans ce phénomène astrologique représente que, psychiquement, un archétype de l'inconscient collectif, qui a la représentation du Dieu qui régit les processus sombres de la vie et de la mort, a été interdit, n'a pas été considéré. À l'Olympe, Zeus avait le royaume des cieux, Poséidon le royaume des mers et Hadès le monde des morts, des ténèbres, de l'enfer. Le fait que nous n'incluions pas Hadès / Pluton dans cette configuration astrologique, dénonce le déni de ce contenu archétypique présent dans notre psychisme inconscient. Nier l'existence de ces attributs en nous-mêmes ne nous libère pas de l'influence terrible, silencieuse et sombre que cet Archétype a sur nous. Bien au contraire, car le déni d'un contenu psychique exacerbe notre vulnérabilité à celui-ci.

 

Par conséquent, afin d'éviter les conséquences désagréables découlant de notre déni de la «réalité psychique», nous devrions inclure Pluton, pas la nier. Ainsi, nous soulignerions nos tentatives pour comprendre les événements de la réalité quotidienne, c'est-à-dire les éléments qui constituent de tels aspects symboliques en question, comme, par exemple, dans cet événement astrologique actuel du premier jour d'août, avec la forte conjonction Lune, Jupiter, Pluton et Saturne en Capricorne.

1  Analyste jungien; Directeur de l'enseignement et de la recherche à Espaço Arte-Ciência (Porto Alegre); Doctorat en littérature comparée - UFRGS.

2 Analyste jungien; Directeur de Espaço Arte-Ciência (Porto Alegre).

2  Recueillis et publiés par Aniéla Jaffé. Jung, C.G. Ma vie : Souvenirs, rêves et pensées. Ed. Gallimard, 1973

3  3 Wagner, Suzanne. Présence de Jung, Entretiens avec Marie-Louise von Franz. Ed. La Fontaine de la Pierre, 2016

4  Ibidem.

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The Denial of the Existence of the God Hades

Conceição Soares Beltrão[1]

 

English version by Anne Rodrigues [2] 

On the 1st of August 2020, the Moon was at 20 degrees Capricorn, in conjunction with Jupiter (20 degrees) and Saturn (27 degrees). This planetary configuration was abundantly announced by long commentaries in the media and in Astrology websites.

‘the dream of reason produces monsters’  
Goya, 1799

Having watched several news and exchanged information with friends, I looked up the planetary positions in the ephemerides. I found out that, in addition to the aforementioned planets in conjunction, there was yet another planet touched by this astrological moment, that is, Pluto. This planet was positioned at 23 degrees of Capricorn also, very close to Jupiter and Saturn! Pluto was actually much closer to the Moon and Jupiter than Saturn itself, the centre of all comments!

 

This caused me to feel unsettled. I did not find any justification for this strong presence of Pluto – the God Hades – to have gone unnoticed! Then I thought: what can be the reason for Pluto not to have been included in that conjunction? Seeing that it is much closer to the Moon and Jupiter than Saturn itself. This is the core around which I build my comments.

 

I perused several websites in Astronomy, Astrophysics and Astrology and found that none made the least reference to Pluto’s position in the said configuration. I therefore deducted that this must have been due to the fact that Pluto ceased being considered a planet in 2006! In other words, scientific reasoning determined that Pluto no longer satisfied the present requirements to be considered a planet. Thus, since it ceased being considered a planet, the characteristics previously attributed to it have also been discarded. It is possible that Astronomy, Astrophysics and Astrology sites, and also the academic and scientific world did not mention this fact exactly because they no longer consider Pluto to be a planet. It is my understanding that Astrology has its foundation within the archetypal world and not in the astronomical universe, which is physically identified, determined and classified. In terms of the so-called science, the Moon is considered a satellite of the Earth, but in Astrology it is considered a planet. In Astrology, we take an imaginary horizon into consideration! Thus, we cannot base ourselves on the celestial bodies, as classified by Astrophysics, Astronomy and so on. The origin of the astrological knowledge is blended with the origin of the history of the very human being. Jung refers to Astrology as being the sum total of all psychological knowledge of antiquity.

 

Then why did Astrology sites follow suit with the scientific sites, not mentioning the presence of Pluto in the said conjunction? And why didn´t astrologers consider the presence of Pluto relevant within that astrological configuration?

 

I moved on to a different emotional state and began feeling frightened by the possible meaning of this silence concerning Pluto’s position. I immediately recalled Jung’s and von Franz’s concerns regarding the need to “unite opposites”: Light and Shadow, Life and Death, Good and Evil!

 

The last writings by Jung, as well as von Franz’s, stress the urgency of the integration of the “shadow”. I quote Jung from “Memories, Dreams, Reflections”:

 

“Light is followed by shadow, the other side of the Creator. This development reached its peak in the twentieth century. The Christian world is now truly confronted by the principle of evil, by naked injustice, tyranny, lies, slavery, and coercion of conscience. This manifestation of naked evil has assumed apparently permanent form in the Russian nation; but its first violent eruption came in Germany. That outpouring of evil revealed to what extent Christianity has been undermined in the twentieth century. In the face of that, evil can no longer be minimised by the euphemism of the privatio boni. Evil has become a determinant reality. It can no longer be dismissed from the world by a circumlocution. We must learn how to handle it, since it is here to stay. How can we live with it without terrible consequences cannot for the present be conceived.”[1]

 

Von Franz categorically said:

 

“we either work to recognise and take hold of the evil within us, or there will be a total destruction.”[2]

 

At the end of his life, Jung stressed the importance of the restauration of the ‘feeling function’ as a way to value consciousness, human values and our constructive participation in life. The present geopolitical and economic situation is holding us back and throwing us into unpredictable, possibly unendurable scenarios. Our destructive capacity has moved beyond acceptable limits and, as Jung mentioned, the human being presently holds a power in his hands without the required psychic maturity. We live in deep fear of the possibility of an atomic war capable of destructing all life on the planet, and here we can quote von Franz:

 

“driven by a shadow of complete foolishness, man comes and destroys all life on Earth.”[3]

 

All destructive power is projected outwardly, acquiring unforeseeable proportions. Dumping individual evil into the collective potentiates the destructive power within frightening proportions. We have lived through situations of mass destruction caused by explosions brought about by extremist groups, and we have also seen an uncontrolled increase in aggressions. Daily news updates are filled with facts of this nature.

 

In view of this, the integration of the shadow is necessary in order for us not to risk bringing about a total devastation of life on our planet. For when we deny the destructive power that lies within each of us, we unconsciously throw this evil into the outside world, attributing it to some person or situation. Consequently, our dark, feared and denied aspects need to be identified, confronted, maintained and contained within ourselves. We should be capable of holding and withstanding this destructive force, not allowing it to go beyond the boundaries of our bodies. The difficulty lies in admitting that within us exists the destructive power we perceive in our opponent. But we are as lazy as the next person we criticize. In a nutshell, knowing that we are indeed honest, but also capable of acting dishonestly. We cannot deny a reality simply because we are incapable of perceiving and understanding it! Rationality does not annihilate the strength of the psychic reality. Rationality blinds us, imposing on us what it has unilaterally decided to define as ‘reality’, and we give in to the latter!

 

Therefore, I believe the fact that Pluto was not included in the above mentioned conjunction points to a sharp evidence of a psychic state to which we are exposed, that is, the unconsciousness of evil. The denial of the dark side manifested in the involved astrological phenomenon signifies the leaving behind of an Archetype of the Collective Unconscious which represents the God that rules the obscure processes of life and death.

Within Olympus, Zeus was given the reign of the Heavens, Poseidon that of the Seas and Hades was made ruler of the World of the Dead, of Darkness, of Hell. The non-inclusion of Hades/Pluto in the said astrological configuration indicates the denial of those archetypal contents present in our unconscious psyche. Denying the existence of these attributes within ourselves does not protect us from the terrible, silent and horrendous hold that this Archetype has on us. Much to the contrary, since the denial of a psychic reality does nothing but exacerbate our vulnerability to it.

 

Thus, in order to avoid unpleasant consequences stemming from our denial of the ‘psychic reality’, we should actually include Pluto instead of denying it. We would in this way reinforce our attempts to understand the events of daily reality. These are the elements that make up the said relevant symbolic aspects, such as, for example, the actual astrological configuration on the first day of August, with the strong conjunction of the Moon, Jupiter, Pluto and Saturn in Capricorn.

 

[1] Jungian Analyst, Research and Teaching Director at the Espaço Arte-Ciência (Porto Alegre); PhD in Compared Literature – UFRGS.

[2] Jungian Psychotherapist

[3] Jung, C.G. (1995) - Memories, Dreams, Reflections – Fontana Press, London, p. 360

[4] Interviews with Marie-Louise von Franz (in press by Ed. Paulus)

[5] Ibid.

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Tradução do Alemão para o Português por  Elis Souza

Correção geral 

Conceição Soares Beltrão

Elisa Freitas Machado

Flora Bojunga de Mattos

Quando Jung tinha de 21 a 23 anos e estudava Medicina deu 4 conferências para seus colegas na Associação de Estudantes de Zofingia na Basiléia. Em uma delas, em 1897, cita a seguinte passagem da ‘psicologia’ de Kant: “A questão principal é sempre a moral; esta é o sagrado e inviolável que devemos proteger, e esta é também o fundamento e meta de todas as nossas especulações e buscas. Todas as especulações metafísicas surgem daí. Deus e o ‘outro mundo” é o único intuito de todas as nossas investigações filosóficas e, se os conceitos de Deus e de ‘outro mundo’ não se relacionam com a moral, não servem para nada.”

Sendo assim – depois de um agudo ataque ao materialismo em geral, prossegue Jung: “Se deve exigir a moral em primeiro lugar como ’Revolução Total’ à ciência e a suas representantes, através de certas verdades transcendentes (...). Se deve, por exemplo, ensinar nos institutos de fisiologia, lugar em que intencionalmente se debilita o juízo moral dos estudantes, ante experimentos vergonhosos, bárbaros, mediante torturas cruéis de animais que são incompatíveis à humanidade – em tais institutos, digo, se deve ensinar que nenhuma verdade que seja investigada por meios imorais pode se converter em justificação moral de existência. (O grifo é meu).

Por isso Jung se volta em direção a Kant e destaca sua idéia de que só a crença em realidades que se encontram mais adiante do toscamente material pode garantir uma atitude moral da vida do homem. O que eu quero salientar mediante estas citações é isto: Jung era em si mesmo um tipo pensamento introvertido, mas até nesta conferência de sua juventude expressa seu sentimento. Nunca foi um intelectual frio. Desde essa conferência foram transcorridos 84 anos, e onde estamos hoje com respeito a este problema?

A tortura cruel de animais tem se multiplicado por mil, não só nos laboratórios científicos, mas hoje em dia também na agricultura, e se tem estendido consequentemente à tortura de incontáveis homens em todo o mundo. Militares peritos contam hoje com sangue frio como podem ser exterminados em uma guerra atômica milhões de homens. Concordo – é a sua profissão; mas não se observa que estejam perturbados ou deprimidos quando devem fazer estes cálculos. Porém estas coisas são conhecidas, de modo que me volto, preferivelmente, ao que está mais próximo, isto é, ao nosso próprio âmbito: a psicologia. Nas universidades impera a estatística, só são recebidas como sérias as afirmações ‘duras’, isto é, estatísticas. Contudo, durante muito tempo Jung tem posto o dedo na chaga: as estatísticas descrevem somente uma imagem intelectual-abstrata do objeto investigado, não sua realidade: quando afirmamos, por exemplo, que em média a pedra pesa ½ kg dentre um monte de pedras e não encontramos em realidade quase nenhuma pedra que pese exatamente ½ kg! Assim construímos um modelo abstrato da realidade e depois o confundimos com a realidade concreta, a que, todavia, considerada com mais precisão, consiste em mera exceção. Todas as ciências fundadas matematicamente vão por esse caminho; e porque Jung não participava dele o acusavam de ser ‘acientífico’ – talvez fosse isto até verdadeiro, porém Jung é mais realista. Na terapia Jung se opunha ao antigo vestuário branco do médico; que trata aos pacientes como a um objeto impessoal – ele se punha à frente de cada paciente com seu próprio sentimento pessoal – fosse esse positivo ou negativo – e fazia de cada hora de análise um encontro pessoal. Discípulos de Jung, que uma ou outra vez introduzem de modo ilegítimo procedimentos técnicos como a pretendida discussão sobre a transferência, têm retrocedido sensivelmente a uma forma de pensamento pré-junguiana. Isto se refere em especial ao chamado problema da transferência, isto é, precisamente a relação sentimental, que entretanto, é tratada como uma grandeza manipulável.

Em uma carta Jung escreve expressamente: “A dissolução da transferência muitas vezes consiste em cessar de descrever a natureza da relação como ‘transferência’. Esta designação rebaixa a relação para uma mera projeção, a qual ela não é. ‘Transferência’ consiste na ilusão de sua singularidade, quando vista de um ponto de vista coletivo e convencional. ‘Ser único’ jaz única e simplesmente na relação entre pessoas individuadas, as quais não têm outros relacionamentos exceto individuais, isto é, pessoas únicas”.[1] Por isso – assim se deve concluir – a palavra transferência devia ser aplicada quando intencionalmente se procura de algum modo desvalorizar as projeções ilusórias, porém não na relação sentimental que se constrói no curso do tratamento.

A amabilidade forçada trata-se, naturalmente, de uma falsa virtude, tão falsa quanto a que certos analistas mostram a seus pacientes – ela segue o antigo papel da prática médica e serve como meio de camuflagem para não se ter que expressar os sentimentos genuínos e verdadeiros. Sentimentos que, freqüentemente, não são em absoluto de todo amáveis, isto é, que tentam, desse modo, iludir rechaços e confrontações. Esta amabilidade-persona é derivada do sentimentalismo cristão, ao qual voltarei mais adiante.

Mas primeiro voltemos ao problema das ciências: nosso mundo científico moderno e tecnológico e sua forma de vida têm sido construídos por cientistas cuja função principal é o pensamento extrovertido ou introvertido, também acoplado à percepção extrovertida ou introvertida. Na Física, por exemplo, se destacam os introvertidos como Einstein, Bohr, Pauli, etc., na física teórica; os extrovertidos, como por exemplo, Wernher Von Braun, na Física experimental. A função da intuição é totalmente rechaçada, porque se necessita de idéias especulativas a fim de fazer novos modelos de pensamento. Porém o sentimento não está em nenhuma parte e está expresso, na maioria das vezes, somente em frases infantis bem intencionadas que conte todas a palavrinha ‘deveria’. E com exceção de Niels Bohr; todos os físicos mencionados colaboraram ou quiseram colaborar na fabricação da bomba atômica! Hoje existe entre os físicos nos Estados Unidos uma tendência à filosofia hinduísta, que por certo é antimaterialista, porém considera a vida do indivíduo um nada.

Quão inumana tornou-se a medicina moderna, não se necessita nenhuma explicação. Os periódicos estão cheios disso, porém quase nada sucede. Por isso o trabalho solitário e pioneiro da Dra. Elisabeth Kübler-Ross, deu um passo na direção correta.

Outro âmbito no qual nosso sentimento, lamentavelmente, funciona mal é na chamada Ajuda para o Desenvolvimento. O médico Benno Glauser publicou a respeito um notável artigo no periódico suíço da Cruz Vermelha.[2] Nele desmascara como nós, ao mesmo tempo que tentamos ajudar povos de outras culturas, pretendemos impor-lhes nossas religiões ou pontos de vista científicos e, desse modo, destruímos seus próprios fundamentos vitais, espirituais e religiosos. Nossos médicos, missionarios, arquitetos e agrônomos partem todos da premissa de que sabem o que é verdadeiro ou falso para os outros e se vêem, ocasionalmente, decepcionados e ressentidos se estes povos rechaçam a ajuda deles com a apatia, resistência e o chamado desagrado. Eu gostaria de citar do artigo de Glauser, o quê um cacique no Paraguai disse a uma médica assistente:[3] “Para nós, caciques, a saúde é um estado ao que chamamos ‘tekoresai’; e para que esta ‘condição de saúde plena’ seja possível, deve haver diversas coisas e situações; todas elas pertencem a ‘condição de saúde plena’ e o constituem: as plantas e árvores, tomadas unicamente como meios curativos; mas também todas as árvores e plantas em seu conjunto; as palavras verdadeiras e equilibradas ou a boa alimentação; o não-passar-por-cima-dos-outros; a selva virgem, a harmonia, a comunidade da aldeia; o falar e dialogar com os outros; a conservação e proteção de nossa ‘forma de ser’; o viver nossa própria cultura e a forma de ser; o sentimento da força, que nos é dada através de todas as coisas que tenho mencionado; a união de nossa comunidade; o viver tranqüilos e em segurança em nossa terra; o viver juntos em família e na comunidade aldeã; as festas. – Então, vêm vocês brancos e nos fazem dependentes do dinheiro e de outras coisas materiais: isto destrói nossa ‘condição de saúde plena’. Vocês dizem coisas más, falam mal dos outros; se apropriam de nossa terra, não ter terra quer dizer não comer nada, não comer nada quer dizer enfermidade. E, finalmente, buscando em seus bolsos, vocês sacam uma pílula branca e querem fazer-nos crer que se tomarmos essa pílula ali está a saúde, que ela seria a saúde...”

Todo o nosso fazer destrutivo consiste, como salienta Glauser, em uma fundamental falta de respeito pelos outros homens e pelos seus valores culturais sentimentais diferentes dos nossos – em outras palavras, numa falta do sentimento genuíno diferenciado. Conhecemos a fundo muito bem esses efeitos catastróficos de nosso proceder e, também, sabemos que existe um ódio crescente de outras nações em relação à raça branca, porém, em troca, não parece que estivéramos dispostos a fazer algo para resistir a isto.

Todavia, não é necessário ir até povos tão distantes, porque a mesma atitude, a falta de sentimento, também predomina entre nós de um grupo para o outro. Os arquitetos de nossa cidade e nossa região, por exemplo, projetam em suas pranchetas de desenho planos da cidade e das ruas que depois vão destruir a felicidade da vida de incontáveis seres. Eles pensam com total sangue frio que se um agricultor expropriado recebe uma indenização adequada em dinheiro ou em terras a questão fica solucionada. Mas não leva em conta, em absoluto, que talvez o que este camponês ame seja o seu pedaço particular de terra. Tiramos os velhos de suas casas, de seus bairros, onde eles têm gatos e dão de comer aos pássaros, e depois nos admiramos quando subitamente eles morrem em suas novas e assim chamadas higiênicas moradas, nas quais não há gatos nem pássaros que emporcalham.

Que devemos fazer então? Transformar nossa política e, portanto, nossa legislação? Acaso a última trata publicamente deste problema? Erich Neumann quis colocar de uma forma militante, em seu livro ‘Psicologia Profunda e Nova Ética’, novas regras morais; seu livro impressionou, mas no fundo não produziu nenhum resultado. Evidentemente, não é esse o meio de abordar o problema. Creio que o Jung de 22 anos pôs o dedo na chaga, quer dizer, que primeiro devemos reconhecer a ‘Realidade da Alma’, isto é, do Inconsciente e, desse modo, também a realidade da imagem divina do Si Mesmo e uma realidade transmaterial, antes que nos aferremos a alguma outra coisa. Deixem-me dar um exemplo: não faz muito, participei de uma conferência na Alemanha sobre sonhos de moribundos, os quais parecem sugerir uma possível vida depois da morte. Depois da conferência veio a mim uma enfermeira com os olhos cheios de lágrimas e disse: “O que você disse não pode nem deve estar certo, pois do contrário eu seria responsável por coisas tão horríveis.” Ela não disse o que era, mas evidentemente havia cuidado mal de pacientes moribundos, – talvez até lhes houvesse roubado – na crença de que eles já não estivessem mais conscientes, de modo que sua ação já não teria más conseqüências. Mas, naturalmente, e se a alma deles estava lá? Seria outra coisa. Não é por acaso que a Dra. Kübler-Ross começou a se ocupar do espiritismo, segundo ouvi dizer. Pela lógica é o passo seguinte no seu trabalho com moribundos, quando não se está persuadido, como nós, pela realidade do inconsciente. Seu sentimento a conduz, conseqüentemente, nesta direção.

Em religiões de todas as épocas existiu e existe a representação de um deus ou de deusas e de outro ‘Mundo de Mais Além’, de vida imaterial, e só isso pode embasar o fundamento de uma ética mais real. “O Desvio do Numen’, escreve   Jung, “parece ser entendido universalmente como o pior e mais original pecado.”[4]

E ao inverso, a essência de toda ética está baseada no fenômeno da consciência, isto é, na relação sentimental entre a ‘pessoa humana e Deus’[5] ou o arquétipo do Si Mesmo.

Em troca o que nós vivenciamos em toda parte no mundo toscamente material é o padecimento injusto e o triunfo da injustiça. Através da honradez, se a colocamos em prática, somos tidos por ingênuo-tontos. O sofrimento inocente dos primeiros mártires cristãos exerceu pelo menos um efeito sobre a massa e converteu muitos ao cristianismo. Mas, quem se lembra hoje do nome daquele jovem professor da escola alemã que foi voluntariamente à câmera de gás com seus alunos judeus para confortá-los? O Que é que provoca os sofrimentos dos descendentes e valentes cristãos na Rússia? Nada! Lemos a respeito deles nos jornais e, de certa forma, o fazemos com um resignado encolhimento de ombros.

A Dra. Liliane Frey publicou o sonho de um paciente moribundo cuja vida havia sido uma sucessão de fracassos exteriores. Ele sonhou:[6] “Uma voz... me disse: teu trabalho e o sofrimento que conscientemente atravessaste, redimiu a cem gerações antes de ti e iluminará a cem gerações depois de ti.”

Também aqui é a existência do mundo do Além o decisivamente importante. Em um mundo só material não existe consolo algum para este homem.

Mas porque isso, especialmente, teria a ver com a função sentimento? Não é por acaso o reconhecimento de uma realidade psíquica importante para as quatro funções da consciência? Evidentemente, “se a ética dos valores é, sobretudo, um produto da função sentimento altamente diferenciada”,[7] como escreveu Jung, ela exige certa inteligência, sobre a qual voltarei mais adiante. Mas, em todo caso, a ética não pode existir sem sentimentos diferenciados, de outro modo ela se converteria em um código rígido de regras de conduta, isto é, um puro dever coletivo. Todos podem passar por isso, por exemplo, quando uma simples ordem policial é aplicada esquematicamente, ou em grande escala, podemos ver como funciona no aparato estatal na Rússia.

Mas agora alguém poderia contestar: onde estão então os tipos sentimento, que concretamente devem existir em grande número em todos os povos? Porque eles não compensam essa carência? Aqui devemos fazer uma diferença entre a existência de tipos sentimento e o estilo coletivo da época, e a atitude coletiva de uma cultura. Naturalmente, teremos muitos tipos sentimento com sentimento diferenciado entre nós, mas a moda, o espírito coletivo de proceder e valorar, não reconhece o sentimento. Isso debilita a influência do sentimento até nos tipos sentimento. Além do mais, a função inferior de um tipo sentimento – como sabemos – é o pensar, o qual terá por isso freqüentemente as tendências inferiores da época: na nossa, o materialismo e intelectualismo baratos. Assim vemos, por exemplo, em mais de uma cultura latina, uma preferência pela ideologia comunista em sua forma mais estúpida, enquanto o povo mesmo é bem carente de sentimentos e de relação, como o são vários povos não latinos. Penso aqui na Espanha, Itália e alguns países Sul Americanos. O que, sobretudo, resulta tão mal é que o espírito da época (Zeitgeist) oficial desvaloriza o sentimento. Freqüentemente escutamos o juízo (por exemplo, contra os adversários da energia atômica) que eles, ‘quando solicitados só apresentam argumentos sentimentais em vez de fundamentos racionais’, e, por certo, com o sentido implícito de que um argumento sentimental é eo ipso sem sentido. De forma parecida isto se mostra nos alvoroços armados por jovens revoltosos. Algumas bem intencionadas tratativas intentam, uma e outra vez, entrar em contato com os jovens rebeldes de forma “razoável” (entre aspas!) – totalmente sem resultado, porque estes jovens são movidos por sentimentos completamente obscuros, em sua maior parte negativos, que não se podem traduzir em uma linguagem racional ou sentimental. Muitos governos propõem um programa qualificado de ajuda de grande alcance para jovens sem trabalho, a fim de possibilitar-lhes uma instrução posterior. Isso é seguramente bom e justo, mas ajudará o suficiente? Deixará de rebelar-se um jovem sem trabalho se aprende um pouquinho mais de eletrônica? Sabemos que os soviets pagam em parte a esses rebeldes, mas é suficiente que lhes demos também dinheiro? Não creio muito que possamos corrigi-los, se nós mesmos permanecermos em nível do materialismo racional; no que este seja totalmente falso; só é falso quando cremos que isso é tudo. Jung escreveu em uma carta[8] que nos tornamos materialistas “unilateralmente intelectualistas e racionalistas”, e que esquecemos totalmente que há ainda outros fatores que não se deixam fluir pela retidão da razão e do entendimento. Por isso vemos por toda parte inflamar-se uma emocionalidade mística, que desde a Idade Média se havia dado por desaparecida. Esta é uma compensação ao progresso técnico excessivamente rápido.

Conseqüentemente necessitamos mais que entendimento e razão, porque as últimas irritam mais ainda os jovens; deveríamos poder lhes oferecer uma nova visão de conjunto, criadora do ser e, por certo, não materialista como totalidade – segundo minha opinião, deveríamos poder estabelecer uma relação com o inconsciente como uma realidade transcendente, relação que não só deveria ser feita com o entendimento, senão também com o sentimento e a emoção. O que acontece com as numerosas formas da Mística Oriental que estão tão em moda entre nós no Ocidente? Também elas chegaram para nós demasiado fáceis e outra vez como algo intelectual, em última instância, elas se aplicam ao pensar e à intuição ou, como formas de Yoga, à percepção. Estes ensinamentos, como Jung pôs em relevo, propriamente são, na verdade, sistemas teológicos que tem pouco ou, absolutamente, não levam em conta o indivíduo e sua relação com o Divino. “Por demasiada sabedoria oriental” escreve ele[9], (...) “a experiência direta é substituída por um excessivo conhecimento oriental”, escreveu ele, “e, assim, fica obstruído o acesso à psicologia. É compreensível, porém, que as pessoas tentem primeiro os caminhos já percorridos, antes que possam decidir-se a andar pelo caminho ainda não trilhado”.

E em uma carta a Miguel Serrano[10] escreve mais: “O senhor escolheu dois bons representantes do Oriente e Ocidente. Krishnamurti é totalmente irracional e deixa a solução para a quietude, isto é, deixa-a como fazendo parte da mãe natureza. Toynbee, por outro lado, acredita em fazer e moldar opiniões. Nenhum dos dois acredita no florescimento e desdobramento do indivíduo como um experimento e uma obra duvidosa e desconcertante do Deus vivo. A ele devemos emprestar nossos olhos, ouvidos e nosso espírito perspicaz (...)” (porque Deus em nós quer ter lugar na consciência). “Nós precisamos urgentemente de uma verdade ou de uma autocompreensão semelhante à do Antigo Egito, como eu a encontrei ainda viva entre os taos-pueblo. O chefe de seu culto, o velho Ochwiäh Biano (lago da montanha), me disse: ‘Nós somos o povo que vive no teto do mundo, nós somos os filhos do Sol que é nosso pai. Nós o ajudamos todo dia a nascer (...). Não o fazemos só por nós, mas também por todos os americanos. Por isso não deveriam interferir em nossa religião. Mas se continuarem a fazê-lo (por meio de missionários) e nos perturbarem, então verão que em dez anos o Sol não mais se levantará.’ Ele supõe corretamente que o dia, a luz, a consciência e o sentido deles vão morrer se forem destruídos pela estreiteza mental do racionalismo americano, e o mesmo acontecerá ao mundo todo se submetido a tal tratamento.”

Em outro lugar[11] Jung salienta, que quando tomamos sem crítica os ensinamentos do Oriente, freqüentemente essas idéias são mais importantes que a vida interior, a esperança e o êxtase liberador da experiência interior se extraviam nesse esforço predominantemente intelectual, de modo que, em vez da experiência original, temos uma imitação exercida como método.

Muitos métodos orientais inclusive reprimem o inconsciente em vez de estabelecer uma relação com ele.[12] Tudo isto deveria bastar para mostrar que na visão de Jung não pode haver nenhuma ética verdadeira sem a experiência original viva do Divino. Não é pela adesão a alguma doutrina teológica e outras. A experiência original só pode ser experimentada pelo indivíduo – o que não é experimentado nunca é verdadeiramente real para mim, pode existir em minha cabeça como idéia ou opinião, mas não é uma experiência. Uma coisa é, que eu conheça só por livros que existem os elefantes, e outra, que eu tenha visto, cheirado, tocado em um deles. Só essa é uma verdadeira experiência, se eu mesmo experimento algo com todas as funções, incluindo o sentimento.

Então, como ficamos com a vida cristã do amor ao próximo – não é ela no fundo aquilo que buscamos e ao que deveríamos retornar? Seguramente o Cristianismo, a princípio, era uma experiência totalmente sentimental. Os primeiros cristãos eram em sua maior parte escravos e homens incultos, e o amor pelos seus irmãos ou irmãs criaram um laço frutífero entre si. Muitos cristãos primitivos até se gabavam de não ser intelectuais. Mas de repente o doutrinarismo teológico, as disputas dogmáticas e o seguimento de crenças estrangeiras ganharam a dianteira e o sobrepuseram ao amor ao próximo universal que foi restringido pelo princípio de poder; aquele arqui-inimigo de todas as formas de Amor.

O slogan marxista da solidariedade internacional é em mais de um aspecto um retrocesso ao ideal de amor dos primeiros Cristãos, mas sem fundamentação no lado transcendente, senão em relação ao lado unicamente material da existência.

Em nossa época todas as nações da Terra andam as voltas com a ordem técnica, econômica e intelectual e, por isso, necessitamos especialmente do sentimento na sociedade em geral. Até isso é um dos triunfos da propaganda comunista.[13] A partir do sistema soviético muito de seus adeptos têm se iludido a este respeito, muitos se voltam a um eurocomunismo e coisas parecidas. Na América do Sul Che Guevara vem sendo celebrado freqüentemente, ao pé da letra, como uma espécie de herói do amor, especialmente pelas mulheres. Apesar de todas as decepções, numerosos representantes eclesiásticos, de todas as confissões, se voltam para o marxismo, porque sentem que ele se encontra ligado ao ideal do amor e próximo do cristianismo primitivo. Mas onde o comunismo teve êxito pelo poder, obteve resultados contrários. Jung escreve[14]: “Os sistemas coletivos, denominados ‘partidos políticos’ ou Estado, atuam destrutivamente sobre as relações humanas. Mas podem também ser facilmente destruídos, porque os indivíduos ainda estão num estágio de inconsciência, que não consegue assimilar o estupendo crescimento e a fusão das massas. Como o senhor sabe, o maior esforço dos estados totalitários destina-se a minar as relações pessoais através do medo e da desconfiança para que surja uma massa atomizada onde a alma humana seja completamente sufocada. Até mesmo a relação entre pais e filhos, que é a mais íntima e natural, é rompida pelo Estado. (...) A única possibilidade de deter esse processo é o desenvolvimento da consciência do indivíduo. Assim torna-se imune à sedução das organizações coletivas. Só assim fica preservada sua alma viva, pois ela se baseia no relacionamento humano.[15] O acento deve cair sobre a personificação consciente e não sobre a organização estatal.” Em outra parte:[16] “(...) a solidariedade e a vida comum da humanidade são uma das questões básicas da existência. Mas a questão se complica, pois o indivíduo também deve apresentar-se como autônomo, o que só é possível se a comunidade possui apenas valor relativo. Caso contrário ela submerge e até destrói o indivíduo e, então, ela própria deixa de existir. Em outras palavras: uma verdadeira comunidade só pode ser formada por indivíduos autônomos, que são seres sociais só até certo ponto. Só eles podem realizar a vontade de Deus colocada em cada um de nós.” (comunidade genuína necessita “compreensão psicológica e identificação nos distintos pontos de vista”).

Muitos jovens, principalmente de orientação esquerda, experimentam hoje uma vida em comunidade, tentando de maneira louvável uma nova forma de relação social. Mas, pelo que eu tenho visto, para concluir, tais comunidades se separam quase sempre devido a suas lutas internas. O sentimento entusiasta de uma aceitação amorosa do outro não consegue se sustentar quando se trata da vida cotidiana, porque é demasiado idealista e sentimentalmente indiferenciado. Por conseguinte, os afetos explosivos dissolvem e terminam a comunidade. Mas afetos e emoções são sinais de um sentimento indiferenciado. Eu analisei alguns jovens que viviam em comunidades e acontecia, sobretudo, como em outras pessoas também com respeito a seus relacionamentos sentimentais, na maioria dos casos eles abandonavam a comunidade original e em lugar dela criavam um círculo de amigos pessoais. Hoje muitos fazem uma forma de culto dos afetos e emoções: positivos, na forma de acontecimentos musicais, ou negativos, mediante disputas. Os que disputam crêem que fazendo isso expressam sentimentos, mas isso não é, contudo, totalmente verdadeiro, pois os sentimentos apenas estão em um estado primitivo contaminados pelas emoções; em contrapartida o sentimento diferenciado não é em absoluto emocional.[17] Cuidar das emoções e afetos conscientemente é algo doentio e conduzem finalmente à destruição. Mas o que não está certo então com o amor ao próximo cristão e sua continuação mundano-materialista no Socialismo e Comunismo?[18] Seu aspecto positivo é, geralmente, certa empatia humana que nos une com todos os homens, mas seu aspecto negativo é o sentimentalismo emocional infantil, o qual não é outra coisa senão o reverso da brutalidade.[19] Enquanto nossas beatas tricotavam calcinhas de lã para os negrinhos desnudos, os comerciantes de escravos, que eram da mesma religião, destruíam as vidas de milhares de negros. Isso só serve para mostrar que sentimentalismo e brutalidade são os dois lados de uma mesma moeda. Portanto nós não podemos regredir a tal amor ao próximo infantilizado, mas sim devemos retornar a ele como um amor humano de forma geral, em um nível mais elevado. Como seria isso mais ou menos? Jung o chama como uma nova forma de Eros (amor) que tem um efeito totalizador, curativo e é a irradiação da personalidade individualizada.[20]

Este Eros é, a propósito, um princípio feminino.[21] Esta forma de amor foi simbolizada na tradição alquímica por uma imagem estranha: o sangue de cor rosado que transpira da pedra do sábio ou ‘Homo putissimus’ e que cura todos os homens. Homo putissimus significa o ser humano mais autêntico, o homem mais puro ou o mais genuíno (não mesclado), em contraposição a Cristo, o homo puríssimo, o homem mais puro.[22] Ele é um homem que conhece todo o humano e não é deturpado por nenhuma influência ou mistura desconhecida. Ele libertará o mundo do mal no final dos tempos através do sangue rosado. Isso simboliza certa classe de Eros, que unifica tanto o único quanto os muitos e faz um todo, deve compensar a falta de sentimento da nossa época, uma forma de amor que está ligada com um autoconhecimento mais elevado e com a compreensão interior. O que até aqui foi considerado um amor cristão é cego e sem visão interior, por isso pode se explicar até mesmo a Inquisição. “Quanto mais cego é o amor,” disse Jung,[23] “mais instintivo ele é, e leva a conseqüências destrutivas, pois ele é uma Dynamis, que necessita de forma e direção.” Para seu uso correto necessita de uma consciência ampliada e de um ponto de vista mais elevado, pois o ser humano inconsciente é enganado pelas suas projeções e, por isso, não pode verdadeiramente ver o outro e nem amá-lo como ele é. Uma inconsciência grande em demasia do sentimento produz ainda, em primeiro lugar, uma aproximação grande e íntima demais sem um unir-se, que depois resulta em uma enantiodromia através de mútuas explosões de afeto. Porém, uma relação sentimental diferenciada inclui certa distância, que em cada caso é diferente. Jung escreve em uma carta:[24] “Diminuir as distâncias entre as pessoas é um dos capítulos mais importantes e mais difíceis do processo de individuação. O perigo está sempre que a distância seja construída de forma apenas unilateral, surgindo então infalivelmente uma forma de violência seguida de ressentimento consecutivo. Todo relacionamento tem seu ponto ótimo em distância, que deve ser descoberto empiricamente. (...) As resistências devem ser consideradas com o máximo de atenção...” Jung ressalta que isso é especialmente difícil entre homem e mulher, pois então se mistura ainda a sexualidade. Uma relação sentimental diferenciada seria, portanto, ao mesmo tempo uma profunda compreensão e uma cálida aproximação pessoal com o outro, como também certa distância, um entender-se e um não-entender-se, o qual significa o silencioso respeito ao segredo do outro ser humano. Para um amante cego e instintivo esse distanciamento ocasiona uma grande dor, mas garante a ele ou a ela também a sua própria liberdade, sem a qual a individuação não é possível. Isso me parece um ponto de grande importância e de significado para o futuro.

Em uma discussão sobre o perigo de uma Terceira Guerra, desta vez de uma guerra atômica, expôs Jung que a única força contrária poderia ser um movimento religioso universal,[25] que conduziria para uma virada total. Desde que Jung escreveu isso em 1945, podemos observar que aconteceram tentativas nessa direção em diversos lugares: uma revivificação do islamismo, seitas como as Bahai, os coreanos Moonies, missões budistas ou incontáveis gurus hindus. Todos eles tentaram ocasionar tal movimento mundial, também não fez menos a Igreja Católica, na qual uma e outra vez “o Espírito, no sentido religioso, move a massa animal,”[26] assim como também mostram os recentes acontecimentos na Polônia. Todavia todos esses sistemas religiosos não são somente um fator redentor, eles mesmos têm também uma sombra perigosa. Um arquétipo que move massas e, principalmente, conduz as pessoas a pensarem que somente elas detêm a Verdade, de forma que, por isso, perseguem aquelas que pensam de outro modo. Além disso, os líderes religiosos ambicionam, uma vez que outra, à semelhança dos líderes políticos, que o indivíduo se identifique totalmente com a sua Verdade, a qual permanece sendo sempre unilateral. “Mesmo que devesse se tratar de uma grande verdade, a identificação com ela seria algo assim como uma catástrofe, de modo a paralisar o contínuo desenvolvimento espiritual. Ao invés de conhecimento tem-se, então, somente a convicção, e isso é às vezes muito mais cômodo e, por isso mesmo, mais atraente.”[27] Em outras palavras, um movimento religioso mundial, a princípio, poderia nos salvar da destruição espiritual do materialismo e, talvez, de uma Terceira Guerra Mundial, mas teria sempre ainda a desvantagem de auxiliar uma certa mentalidade gregária. Somente uma compreensão consciente dirigida à própria sombra e à sombra dos arquétipos, isto é, dos poderes religiosos, poderia nos proteger da psique gregária e sua tendência de ser arrastada à autodestruição. Mas isso significa que temos de desenvolver uma relação sentimental diferenciada – inclusive a necessária distância para com nossos poderes interiores – devemos estabelecer uma relação eu-tu com o Si mesmo, com a Divindade ou o Numinoso, e não, em vez disso, desenvolver um fanatismo religioso não-crítico, o qual se baseia em uma possessão pelo Numinoso.

A relação sentimental com os semelhantes de fora e com as potências arquetípicas no interior andam de mãos dadas de forma estranha. Em suas Memórias Jung acentua que o critério de uma vida é a relação com o ilimitado, isto é, com o mundo numinoso do arquétipo.[28] “Somente quando eu sei que o ilimitado é o essencial, é que não desperdiço meu interesse em futilidades. (...) Em última instância só se tem algum valor por causa do essencial, e se não se tem isso, desperdiçou-se a vida. Também na relação com outros seres humanos o decisivo é se o ilimitado se expressa nela ou não.” Jung quer dizer com isso que uma relação profunda com o outro somente é possível através do Si mesmo. Geralmente, do ‘eu’ para o ‘eu’ existem somente associações e interesses superficiais. Como o Si mesmo se beneficia em uma relação eu não posso dizer aqui. Jung tentou mostrá-lo em seus livros sobre a transferência e em Mysterium Coniunctionis. Mas uma e outra vez segue sendo uma misteriosa aventura do amor.

Parece-me – para concluir –, que hoje em dia o pedido de Jung está sendo gradativamente melhor compreendido do que no período em que viveu, mas este ponto extremamente importante, a reabilitação do Eros intra-humano e de uma relação sentimental mais diferenciada com o Transcendente, ainda não é muito levada em conta. Muitas pessoas vêm as idéias de Jung como um sistema filosófico ou uma teoria, ou ainda pior, como uma nova ideologia coletiva ou como uma nova orientação na teoria psicológica, algo que nenhuma delas é. O processo analítico é um processo de pura experiência empírica, no qual a psicologia se transcende em si mesma como pura ciência.[29] No decorrer deste processo tudo se converte em um encontro vivo com entidades interiores e exteriores, com as quais devemos estabelecer uma relação sentimental. O foco de Jung sobre os elementos individuais é, por isso, consciente e a propósito unilateral, para compensar a unilateralidade coletiva predominante. “Há e sempre haverá,” escreve ele por volta de 1934,[30] “os dois aspectos, isto é, o ponto de vista do líder social, que, enquanto idealista, vê o bem-estar numa maior ou menor ocupação do indivíduo (a favor da comunidade), e o líder espiritual que objetiva apenas um aperfeiçoamento do indivíduo. Não vejo possibilidade de uma conciliação entre eles, uma vez que constituem um par necessário de opostos, que mantém o mundo em equilíbrio.” Jung viu sua própria tarefa na melhoria dos indivíduos, que simplesmente não dá resultado sem uma relação sentimental, pessoal e única. Talvez ele entre um dia para a História como aquele cavaleiro procurado, o qual trouxe de volta para a sociedade o desaparecido Santo Graal, o princípio feminino do Eros, isto é, como aquele ‘homo putissimus’ da Alquimia, que transpirava sangue rosado – uma nova forma de Amor curativo e totalizador, que embora não possa eliminar o recentemente chamado par de opostos coletivo-individual, possa construir uma ponte entre ambos.


[1] Carta para Sra.Olga Fröbe-Kapteyn, 16 de agosto de 1947, apenas na edição inglesa, vol. I, p.475.
[2] N.5, 1, jul.1981, p.13 em diante.
[3] O.c. p.17/18.
[4] Cartas, vol. III, p.88, carta de 11.06.1957.
[5] Cf. Ibid., vol. III, carta de 26.5.1956, p. 24-25; cf. carta 09.7.1957, p. 97.
[6] Im Umkreis des Todes. Daimon, Zurich, 1980, p.34.
[7] Cartas, vol. I, carta de 20.03.1937, p. 242.
[8] Cartas, vol. I, carta de 10.10.1933, p. 144.
[9] Cartas, vol. I, carta de 20.01.1934. p.154.
[10] Cartas, em 14 de setembro de 1960, vol. III, p.291-292.
[11] Cartas, carta de 19 de outubro de 1960, vol. III, p. 294-297.
[12] Cartas, vol. III, carta de 06.12.1960, p. 306-307.
[13] Cf. Obras Completas, tomo X.
[14] Cartas, 12.07.1947 para A. Heinz E. Westmann, vol. II, p.78.
[15] Acentuação feita por mim.
[16] Cartas, vol. III, carta de 17.08.1957, destinatária não identificada ma Suíça, p. 100-102 e também a carta de 23.09.1949 para Dotothy Thompson/E.U.A. p. 141-145.
[17] Cartas, vol. II, carta para Aloys von Orelli – Zurique – de 07.02.1950, p.151-152.
[18] C.G.Jung Letters, vol. I, carta para H. G. Baynes em 22.01.1942, p. 311-313. Apenas nas cartas em inglês.
[19] Cartas, vol. I, carta para Conde Hermann Keyserling em 10.05.1932, p. 108-109.
[20] Von den Wurzeln des Bewusstseins. Zürich 1954. Der Philosophische Baum, cap. 7, p. 411 em diante: Das rosenfarbene Blut und die Rose.
[21] C. G. Jung Letters, vol. I, carta para Erminie Huntress Lantero de 18.06.1947, p. 464-465 – (apenas no inglês).
[22] Obra citada (20) Wurzeln, p. 412.
[23] Idem, p. 414.
[24] Cartas, vol. I, carta para Oskar A. H. Schmitz em 20.09.1928, p. 70.
[25] Conforme carta para o Pastor Hans Wegmann de 12.12.1945, Cartas, vol. I, p. 405-406.
[26] Idem.
[27] Obra citada de von den Wurzeln, p. 585.
[28] Memórias, Sonhos, Reflexões. Editora Nova Fronteira, 1963. (O grifo é meu).
[29] Von den Wurzeln, cap. 1, p 590/91.
[30] Cartas, vol. I, para Samuel D. Schmalhausen, carta de 19.10.1934, p. 187-188.

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[...] nossa psique é estruturada à imagem da estrutura do mundo, e o que ocorre num plano maior se produz também noquadro mais ínfimo e subjetivo da alma.[1]

 

[1] C. G. Jung – Memórias, Sonhos Reflexões, p. 290 – Editora Nova Fronteira/RJ.

Nós coordenadoras do Espaço Arte-Ciência - Um lugar da Psicologia de C.G.Jung e Marie-Louise von Franz sentimos, neste momento, a necessidade de nos dirigirmos a todxs (analisandxs, alunxs, colaboradorxs, parceirxs, colegas...) com quem nos sentimos ligadas pela dedicação e atenção dirigida ao trabalho com o Inconsciente.

O tema da Sombra, ao longo da existência do Espaço Arte-Ciência, foi conteúdo de várias atividades. Abordamos a questão da Sombra em vários Seminários, Cursos, Palestras, Textos e mesmo nas Sessões de Análise. Assim todxs, de alguma forma ligadxs ao Espaço Arte-Ciência, sabem da importância da ‘integração da sombra’ pelo motivo da relevância que esse tema ocupa nos trabalhos de Jung e von Franz.

Nós propomos as seguintes reflexões:

  1. O que não estou percebendo em meu trabalho com o inconsciente?  

  2. O que me falta para ampliar a consciência com a parte sombria, o lado desconhecido e rejeitado em minha própria psique? 

  3. O que me ensina o mito alquímico para realização dessa tarefa? 

Em relação à primeira reflexão é importante relembrarmos von Franz, no final de seu livro “A Lenda do Graal”[1], quando desenvolve seu pensamento sobre a integração do mal: “É importante lembrarmos no trabalho com o mal, que ele não se apresenta como tal, de chifres, rabo ou pés com fendas, mas sim, com a aparência de toda a benevolência, de toda a suavidade, de pleno amor e boas intenções, escondendo sua verdadeira identidade. Isto é: o mal se apresenta como o seu oposto, o bem!”

 

Para a segunda reflexão podemos convidar nosso próprio corpo. O corpo é uma tríade. O corpo aparência, que se pode ver refletido no espelho; o corpo que não para, por exemplo, o coração que bate o sangue que circula e o corpo sentimento, que carrega a emoção e se expressa. É preciso compreender que não conhecemos todos os habitantes do nosso corpo, mas eles estão lá.  Como me sinto (me manifesto corporalmente) diante de tal situação? Qual é a minha reação? O que diz meu corpo quando começo a pensar em fazer tal e tal coisa, ou tomar tal e tal atitude?

 

A terceira reflexão exige que busquemos o que Jung e von Franz nos deixaram sobre o significado simbólico da Alquimia para a nossa vida psíquica inconsciente[2]. Através de um árduo e difícil trabalho, eles nos mostraram como os antigos alquimistas viveram o mais profundo si mesmo.  A compreensão da matéria como algo que está vivo, que nos reintegra à própria natureza e nos recoloca como ser integrante dessa natureza é urgente. A visão alquímica da vida não é fragmentada. Na Alquimia os opostos estão unidos, o bem e o mal são elementos da mesma substância, neste sentido o feminino, tão banido pelo Cristianismo como a sombra da Trindade masculina, também está integrado. Von Franz narra a alegria de Jung quando o Papa proclamou a Assunção de Maria. Ele percebeu como parte da integração do feminino pela Igreja Católica Apostólica Romana. E este ato da Igreja estaria representando a diminuição da tensão entre os opostos no cristianismo, representando um movimento na consciência para a humanidade. Sabemos que, durante o trabalho alquímico, o artífice pára de manipular a matéria e a coloca no forno, no atanor. A partir deste momento, ele só reza para que a transformação ocorra. Tal momento representa o trabalho com a nossa matéria prima (nossos conteúdos inconscientes), tomamos consciência, mas não temos nem poder e nem força para realizar a transformação. É o momento em que a nossa personalidade número dois entra em ação, depois de fazermos todo nosso esforço na transformação de nós mesmxs, entregamos ao Self, ou a Deus na linguagem religiosa, para que ele execute a transformação. Self ou Deus é a parte em nós que transcende a consciência do eu.

 

Assim, todo o nosso trabalho de integração da Sombra exige a consciência de que não podemos excluir ou destruir o mal em nós mesmxs. Devemos sim, ter conhecimento de sua existência. Através disso, desenvolvemos a consciência de que realmente estamos agindo com o mal, sem percebermos que estamos fazendo o mal. Só assim, conscientes de que essa possibilidade possa estar ocorrendo, temos a chance de nos posicionar frente a ele, assim como Jó se posicionou frente a Javé. O que está escrito em ‘Resposta a Jó’[3] é uma forma de como devemos lidar com o lado obscuro de Deus. Nós, ocidentais, fomos educadxs a dividir a totalidade e a rejeitar o lado obscuro, o desconhecido da mesma realidade. Cristo versus Lúcifer! Não fomos educadxs a compreender, a semelhança dos orientais, que a totalidade inclui o seu oposto, que o bom Deus também possui um lado tenebroso e destrutivo. O símbolo chinês do ‘Tai Chi’ possui a integração dos opostos. Isto nos mostra que os opostos são complementares, pois integram uma única coisa.  Niels Bohr[4] utilizou esse símbolo chinês para a representação de seu trabalho sobre a lei da complementaridade: os opostos se complementam. 

 

Assim, ao invés de banir o mal, precisamos do todo a cada momento vivido, ampliando mais e mais a consciência de nossa totalidade. Sabendo que, agimos a partir dessa totalidade, que em si contempla os opostos!

 

São essas as reflexões que gostaríamos de sugerir a todxs, a fim de intensificar os nossos trabalhos com o inconsciente. Pois como von Franz  chamou a atenção: ‘se um maior número de pessoas não se  trabalharem, não trabalhar o inconsciente, a destruição será total[5]’ – (destruição da humanidade).

 

 

Porto Alegre, 24 de março de 2020.

 

Conceição Soares Beltrão

Elisa Freitas Machado

Flora Bojunga Mattos

 

[1] C. G. Jung – Memórias, Sonhos Reflexões, p. 290 – Editora Nova Fronteira/RJ.

[2] Jung, Emma; von Franz, Marie-Louise- ‘A Lenda do Graal’: do ponto de vista psicológico; Editora Cultrix; São Paulo, 1995.

[3] C.G.Jung: Mistério Coniunctionis vols.I e II; Psicologia e Alquimia; Aion; M-L von Franz: Mistério Coniunctionis vol.III, Alquimia, Sonhos e a Morte, Estudos sobre os Contos de Fada...

[4] C.G.Jung – Resposta a Jó – editora vozes- Petrópolis- RJ

[5] A lei da complementaridade - Niels Bohr - mostra que a natureza da matéria e da radiação é dual e os aspectos ondulatório e corpuscular não são contraditórios, mas complementares

[6] Segunda entrevistas - Suzanne Wagner (analista do Instituto C. G. Jung de lós Angeles)   1977 – Bollingen. 

Flora Bojunga Mattos[1]

O filme argentino de 2011, ‘Un cuento chino’ com roteiro e direção de Sebastián Borensztein – inspirado em um relato esdrúxulo, no entanto verídico e acontecido na Rússia em 2008[2] - narra a história, também insólita, sobre a relação de um comerciante portenho de vida monótona, fechado em si, mesquinho, amargurado e a intensa convivência com um jovem chinês imigrante que leva para a sua casa e o ajuda na busca do tio que mora na Argentina.

O personagem principal Roberto, dono de uma pequena ferragem, é quem nos conduz na experiência de descongelamento do modelo de pensar linear – predominante em nossa sociedade contemporânea ocidental – ao acompanharmos o seu enfrentamento cotidiano com o inesperado encontro e a coexistência com o chinês. O personagem coadjuvante Jun, no papel do imigrante asiático, nos envolve no modelo oriental de se comportar e nos apresenta sem impor, com a aparência de certa passividade, a possibilidade de ampliarmos a visão habitual, a ponto de permitir a virada para uma atitude diferente de lidar com a vida, principalmente no que diz respeito a dar mais espaço para o afeto.

 

No hábito de colecionar histórias inusitadas e de se idealizar como protagonista nelas, Roberto não poderia imaginar que através desse hobby construía, por uma vertente latente e silenciosa – de qualidade arquetípica –, um modo de agir que o tiraria da rotina rígida e solitária que o prendia ao passado. Tal qual o modelo geral da ciência, Roberto mantinha como única realidade a consciência de uma tradição racional, embasando-se em acontecimentos de sua história pessoal, sem o saber, referenciava a causa e o efeito, sendo justamente esse o questionamento com que vem se deparando o novo paradigma científico difundido popularmente desde a segunda década do século XX pela Física Quântica. No entanto, anterior a isso, temos de considerar a experiência de C. G. Jung nos primeiros anos de 1900, testando e comprovando a abrangência e a materialidade de nosso psiquismo. Ele nos provou e o mundo ocidental absorveu a existência do inconsciente coletivo como base da psique na formação da consciência de todo o ser humano, conceito esse profundo (arquetípico) e fundamental na Psicologia Analítica que enfatiza a nossa relação e interconexão com a criação como um todo. Através dessas perspectivas, da Psicologia Analítica e da Física Quântica, podemos ampliar o conhecimento da realidade considerando os eventos sincronísticos[3]. O modo de perceber a realidade se alarga da simplicidade do tratamento adotado pela causalidade, de um evento ser a causa de outro, para a complexidade paradoxal e complementar, que se entenda como um conjunto significativo e conectado de fatos, que nos conduz a seu sentido. Jung denominou de sincronicidade a esse modo de perceber acontecimentos acausais interligados entre si. A essa mesma realidade o físico Capra nomeou de orgânica. Os chineses há milênios olham os acontecimentos em conjunto, como um campo de sinais que nos falam de um significado a ser evidenciado.

 

O personagem desenvolvido através do asiático Jun, subvertendo a ideia pré-estabelecida em nosso contexto, nos possibilita descobrir o modo de pensar sincronístico, que é a maneira na qual podemos apreender da filosofia chinesa. Culturalmente a China nos ensina a perceber a configuração do momento, o que possibilitaria o alargamento de nossa consciência, mas ainda tendemos a nos prender aos acontecimentos isoladamente sem alcançar o estabelecimento de uma conexão do que ocorre ao redor do eu pessoal.

 

A partir do momento em que Roberto sabe que Jun é o protagonista de uma daquelas histórias que colecionava e arquivava há anos, amplia o seu conhecimento e a tensão é relaxada, constelando a possibilidade de ocorrer mudanças na vida de ambos. Então a narrativa se encaminha para a complexidade e deixa de lado a racionalidade plana dos acontecimentos bidimensionais, chapada no cotidiano, um modelo rígido de pensar guiado por um antes e um depois. É nesse instante que se abre a probabilidade do raciocínio envolver a emoção.

 

No modo causal de pensar, além do movimento mental ser linear: A causa B; B causa C; C causa D; e assim por diante; no geral tende a separar os eventos físicos dos eventos psicológicos. A ideia prevalente até o século XIX, por exemplo, era de que as causas físicas terem efeitos apenas físicos, portanto as causas psíquicas, ou não visíveis, somente poderiam apresentar efeitos psicológicos.

 

Atualmente nos permitimos fazer interações entre o psíquico ocasionar um evento físico e vice-versa. Pelo menos essa tem sido a discussão a que se propõe a medicina psicossomática, comprovando o fato de as pessoas apresentarem sintomas e até doenças, sendo a manifestação orgânica uma reação a emoções fortes vivenciadas, por exemplo, os desmaios, pressão alta, asma, diabetes e até infartos, entre outros tantos acontecimentos que vão mesclando o fisiológico e o psicológico. Ainda assim, a causa é vista antes do seu efeito, prevalecendo uma ideia da linearidade do tempo, embasada no antes e no depois, com o efeito vir sempre depois de algo ocorrido. Nesse caso, ou nesse tipo de medicina, ainda falta a visão da simultaneidade dos fatos no tempo.

 

O importante a ressaltar é do filme UM CONTO CHINÊS[4] se prestar à discussão desses dois tipos de pensar e privilegiar o fato de, mais do que uma coisa ser o fator causador de outra, ser a abertura para ir além da forma tradicional explicativa. A narrativa nos permite a possibilidade de enxergar os fatos conjuntamente, dando-lhes um significado que interfere em um dado momento na vida dos personagens. Exageraria até afirmar que o filme adota o modo de pensar sincronístico, como foi sempre desenvolvido pela filosofia chinesa – de juntar fatos e não separá-los –, provocando se buscar o sentido de um acontecimento. Não se importa com a distinção entre os eventos psíquicos e físicos (até porque nem sabemos onde um começa e o outro termina em verdade), mas reúne sem distinção acontecimentos internos e externos, apresentados pela narrativa do conto, pois de fato é desse modo que acontece na vida de todas as pessoas, embora não tenhamos o hábito de percebê-las assim, no entanto, só assim conseguiremos deixar emergir o sentido.

 

O ponto a salientar é de a vida estar repleta de acontecimentos espontâneos e suas simultaneidades no tempo e ainda nos prendermos estritamente a fatos explicativos, compartimentados em excesso, que levam ao desconhecimento e empobrecimento do sentido. Num tipo de atitude assim, abandonando inclusive a percepção de como nos sentimos em um dado momento – pelo fato de não computarmos a emoção – deixamo-nos ofuscar pela objetividade da razão, como se ela pudesse ser o centro norteador da compreensão, então perdemos de captar o entorno e de fazer relações que nos levariam a trazer um conhecimento mais amplo. A atenção e a concentração ao redor, incluindo os detalhes, pelo fato de olharmos para os acontecimentos de nossa vida interior em conjunto com os fatos externos que nos cerca em um dado momento e tudo o que nos for possível abarcar de algo que possa estar relacionado, nos remeteria a seguir o caminho de um sentido que se evidencia, mas que precisa ser reconhecido.

 

Para aprofundar o desenvolvimento da ideia sobre sincronicidade, a dica é ler as obras de C. G. Jung, principalmente o volume VIII sobre SINCRONICIDADE: UM PRINCÍPIO DE CONEXÕES ACAUSAIS, além do livro de M-L von Franz, ADVINHAÇÃO E SINCRONIDADE: a Psicologia da probabilidade significativa.

 

[1] Psicoterapeuta de abordagem analítica junguiana no Espaço Arte Ciência, www.espacoarteciencia.com.br, desde 2005 no projeto de CINETERAPIA, florabm@gmail.com .

 

[2] Ver relato no periódico Komsomolskaja Prawda que traz a notícia da polícia Russa detectar um grupo de delinquentes que roubava gado e o transportava via aérea. Num desses eventos as vacas foram jogadas do alto ao vazio, afundando uma embarcação pesqueira japonesa, numa verdadeira chuva de vacas, na costa russa.

 

[3] Fatos espontâneos acausais que acontecem de modo simultâneo em um dado momento, de qualidade arquetípica, e que possuem entre si uma relação significativa e nos conduzem a um sentido.

 

[4] Filme apresentado na sessão de CINETERAPIA do dia 19 de maio de 2015 no Espaço Arte-Ciência, Porto Alegre/RS - Brasil.

Conceição Soares Beltrão

Sábado, enquanto preparava um lanche, liguei a TV em um canal voltado para ‘as artes’, e simultaneamente, fiquei olhando o que estava sendo mostrado. Então, vi essas imagens e não conseguia, de imediato, decodificar o que eu estava vendo. Depois o artista começou a explicar essa sua obra de arte, e a cada explicação as imagens iam surgindo.

 

Minha primeira reação foi: o que é isso?

 

Como podem fazer isso?

 

O que sentem essas pessoas quando lançam os vasos com as plantas e as ver esmagadas no chão?

 

 E o que sente o próprio artista mexicano ao conferir como ficaram esses seres jogados pelas janelas desse antigo hospital e hoje transformado em espaço de arte e cultura?

 

E se essas plantas pudessem falar ou emitir algum som audível aos nossos ouvidos, que diriam ou que sons produziriam? O que vociferariam?

 

O fato é que me chocou aquelas plantas serem lançadas do alto das janelas para ficarem ali com as raízes, que deveriam estar abaixo do solo, não acima expostas, como que ‘feridas abertas’, machucadas por esse lançamento do alto. Mesmo que estejam sendo regadas estão expostas, fora do espaço vital, o solo. Foram lançadas e possivelmente quebraram-se algumas folhinhas, um pedaço da raiz, ou na superfície do caule.

 

E o pior nessa reportagem, foi que toda essa ‘barbárie’ estava sendo mostrada e considerada como ‘expressão de arte’!

 

Essa não entendi!!! Ou melhor, é difícil aceitar!

 

Quando vejo na rua ou nas calçadas plantas que foram arrancadas de jardins e jogadas fora, isso sempre me inquieta, eu as recolho e planto em um vaso ou direto na terra.

 

Mas se eu fosse a este local, não poderia fazer isso, pois é uma instalação de arte, estabelecida em uma instituição voltada para o mundo das artes. É um projeto financiando por Instituições. Possivelmente, se eu fosse pegar essas plantas para socorrê-las seria impedida pela segurança do local.

 

Sabemos também que a criação envolve construção e destruição. Começo a desconfiar que essa arte, para mim, fala mais de destruição do que construção.

 

Por favor, façam arte, mas deixem nossas plantas indefesas fora dessas!

 

 

 

Vejam no site

Imagens de hospital matarazzo hector zamora

Conceição Soares Beltrão [2]

Atualmente está em foco uma grande preocupação dos profissionais da área da saúde: o ‘estilo de vida’. Ele é considerado fator fundamental para se conseguir saúde e mantê-la em boas condições. Em razão disso, crescem os estímulos às atividades físicas, enfatiza-se uma alimentação boa e natural, ressalta-se a necessidade do lazer e do repouso. Constata-se, enfim, uma preocupação com o bom funcionamento do corpo para quem deseja ‘qualidade de vida’.


‘Ênfase no corpo’, contudo, insere-se num contexto mais amplo, pois vivemos num momento histórico no qual a valorização do mundo concreto, o mundo dos sentidos, encontra-se exacerbada. Paradoxalmente, tudo isso visa a longevidade, como se, desta forma, a ‘eternidade’ estivesse a nosso alcance. Pertence a essa realidade, a modulação do corpo através de métodos invasivos da medicina estética. Decorrente disso, surgem a cada dia novas técnicas para aperfeiçoar essa ‘estética do corpo’, tanto do corpo feminino quanto do corpo masculino.  A busca por se manter eternamente jovem lota as crescentes e numerosas clínicas de cirurgia plástica. Há um clima de mudar, de transformar o feio no belo! Mas será que o feio é o que vejo, ou o feio que vejo, em verdade, é o feio que sinto? A falta de sentido na vida, o vazio existencial, pode ser a feiúra projetada nas rugas que começam a surgir, nas ‘gordurinhas’ nas diversas partes do corpo, na indesejável curvatura do nariz, entre outras particularidades. Mais fácil é então se lançar na ilusão das intervenções da medicina estética do que se colocar frente a frente com o verdadeiro conflito e debater até entendê-lo, transformá-lo e integrá-lo à consciência, modificando desta forma a atitude frente à vida. Parece, pois, que nesse turbilhão de ‘alternativas externas’ fica mais fácil navegar no mar das ilusões estéticas do que enfrentar o que se teme enfrentar em si mesmo. Mas, sem o mergulho no mundo psíquico inconsciente, a insatisfação não cessa.


Apesar das fortes tendências contrárias, nosso modelo de ciência permanece preso a uma visão fisiológica do humano. Os profissionais da saúde cada vez mais se especializam e, nessas especializações, fragmentam a totalidade humana. O mote surgido na Antiguidade: mens sana in corpore sano, chama atenção para a unidade mente-corpo. Todavia, o atual enfoque restringe-se aos cuidados com o corpo, concluindo-se que se o corpo está saudável, a mente também assim estará! Essa é uma visão que ignora a existência da vida psíquica inconsciente. Como em nosso momento é a forma, o visual que importa, e como não vemos o inconsciente, ele acaba sendo ignorado, pensamos que ele não nos influencia, portanto, não existe! 


Não obstante, não podemos esquecer que somos uma totalidade. Somos uma unidade, o nosso corpo é parte do ser total que somos. Nosso ser envolve tanto a dimensão física quanto a dimensão psíquica, uma está conectada a outra. Se esquecermos uma dessas duas dimensões, nos tornamos vulneráveis. A obtenção da ‘qualidade de vida’ envolve tanto o cuidado com o corpo quanto o cuidado com nossa vida psíquica.


 Como Jung mostrou, nossa psique está longe de ser um bloco unitário. Nossa vida psíquica é uma pluralidade de vozes! Todas expressam, influenciam e impõem seus valores, fazendo-nos agir sem considerar a nossa própria vontade. A essas ‘vozes’ ou personagens internos, Jung denominou de Complexos de Tonalidade Afetiva. A partir da ‘Teoria dos Complexos’ de Jung, temos a possibilidade de conhecer a dinâmica psíquica e seu domínio sobre nós. Se intencionarmos uma vida saudável, precisaremos também considerar a nossa realidade psíquica inconsciente, como parte integrante de nós mesmos.


Através do meu trabalho, como psicoterapeuta junguiana, diariamente constato a realidade psíquica inconsciente das pessoas que acompanho; manifesta-se no corpo no exato momento em que trabalhamos determinados conteúdos psíquicos trazidos à consciência através dos sonhos. Segundo Jung, deveríamos ser capazes de conectar o sintoma físico ao conteúdo simbólico inconsciente correspondente. Esse é o grande desafio, pois se o conteúdo é inconsciente implica dizer que não temos conhecimento de sua existência, dessa forma, como poder perceber sua influência e sua materialização em mim mesmo? Como conectar essas duas dimensões? Esta é uma das grandes contribuições que Jung nos deixou: a diferenciação, entre o eu e os conteúdos do inconsciente. Através da ação reflexiva podemos perceber a existência e a influência do inconsciente. No segundo momento devemos nos esforçar para identificar e sentir o inconsciente no exato momento de seu surgimento em minha consciência, isto é, quando tenta se materializar no próprio indivíduo. Precisamos saber, ainda, que nossa consciência é frágil e tênue, à semelhança de uma suave chama numa pequena lamparina, exposta aos eventos externos que a ameaçam. Por isso, este trabalho de conscientizar-se pressupõe estar sujeito ao esforço e à constância da vontade do eu para empreendê-lo. Nesta trajetória contamos com a ajuda do próprio inconsciente que constantemente nos envia cartas[3],  informando o que verdadeiramente está acontecendo em nós. Refletindo sobre os nossos sonhos, temos a chance de conhecer as características daqueles que ‘nos habitam’, reconhecer nas próprias ações determinado personagem. Para Jung os sonhos são relatos diários das condições psíquicas inconscientes do sonhador.


Além dos sonhos, podemos conhecer os conteúdos do inconsciente através das visões, das projeções, além do trabalho com a imaginação ativa, técnica que Jung nos ensinou. Logo, precisamos considerar o inconsciente, como a verdadeira realidade a fim de, paradoxalmente, poderemos nos livrar de ações inconscientes e perigosas, originadas na negligência da existência do inconsciente em nós mesmos. Agindo dessa forma, considerando a inteireza do ser, o indivíduo tem a chance de estar favorecendo a qualidade em sua vida e interage, construtivamente, com as pessoas e seres que o circundam, visto que uns influenciam constantemente os outros.

 

[1] Texto realizado em 10/02/2013 e publicado no Blog  http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/

[2]  Psicoterapeuta de orientação Junguiana no Espaço Arte-Ciência www.espacoarteciencia.com.br

[3] Von Franz quando se refere o significado dos sonhos diz que eles são cartas diárias do Self para a consciência.

 

Bibliografia


Jung, C.G.: A Vida Simbólica; vol.XVIII/I; Editora Vozes; São Paulo, 1998.
________: A Prática da Psicoterapia; vol.XVI/I; Editora Vozes; São Paulo, 1981.
________: Presente e Futuro; vol.X/I; Editora Vozes; São Paulo, 1988.
Von Franz, M.L.: Psyche and Matter; Shambhala; Boston & London; 1992.
_____________: Reflexos da Alma; Editora Cultrix/Pensamento; São Paulo, 1997.

Flora Bojunga Mattos[2]

Há um século, completado em janeiro deste ano, que a Psicologia marca sua posição definitiva na Ciência. Tenho como marco simbólico desse momento a atitude de Carl Gustav Jung frente ao grupo psicanalítico. Historicamente sabemos que um tanto de inquietação caracterizou sempre a amizade de Jung com Freud. Com o tempo não restou mais dúvidas das divergências serem maiores entre eles. Jung devia de enfrentar só as dificuldades na pesquisa psicológica em relação ao seu objeto de estudo – a psique –, já que verdades se impuseram a ele e desvelaram uma parte inconsciente coletiva que apresenta obscuridades bem maiores do que as que vinham lidando até então na Psicanálise, cismada da libido ser exclusivamente sexual, insistia do psíquico inconsciente ser apenas ligado à história pessoal. O grupo de Freud negava-se, terminantemente, a reconhecer a parte inconsciente coletiva, classificando-a de somente ‘resíduos arcaicos’ e não simbólicos. Atualmente sabemos da importância do campo coletivo inconsciente para a ciência como um todo, em seus vários aspectos.

 

Devemos a Jung que, sem intenção de ser o pioneiro, seguiu o caminho do pesquisador em busca de desvendar o desconhecido, sacrificando a posição conquistada, abandonou o prestígio e o reconhecimento, entregando-se a observar, anotar e relacionar os eventos psíquicos. Hoje vemos expressões como: inconsciente coletivo, arquétipos e complexos, entre outros fatos psicológicos, assimilados e tratados de modo quase familiar na linguagem comum. De fato esses acontecimentos sempre existiram em nós, mas não eram de nosso conhecimento.

 

O medo de Freud de perder a ‘autoridade’ e a cobiça de seus discípulos pelo poder, na figura principal de Ernest Jones, engessaram as descobertas psicológicas na neurose da verdade única. Dogmatizada, a Psicanálise foi aos poucos repelindo os pesquisadores que avançavam ao já estabelecido com receio de perder o espaço e o controle conquistado. Isso se refletiu até os dias atuais na Psicologia, que não conseguiu se unificar, por isso dizemos existirem Psicologias. Na academia construímos uma Psicologia ‘Frankstein’, ganhando em diversidade fora dos muros universitários e perdendo o registro dos achados pelos meios oficiais. Mas quem perde mesmo é o aprendiz, confundindo a fatia com o todo, já que ora seu saber navega por um aparato teórico como explicação para tudo, ora outra ‘corrente’ ruma suas ideias por um rio que nunca alcança o mar. E tudo isso por pura subserviência e como se fosse possível parar o movimento da vida com as mãos, alguns ainda seguem o padrão do medo e do poder, negando de a melhor parte ser a que escapa entre os dedos, como costuma ser o desafio de um saber mutante e sempre inesgotável no mundo do inconsciente maior.

 

Enquanto isso boas novas emergiram das profundezas do mar nesses cem anos graças aos que não se submeteram. A ousadia se opôs à postura servil conduzindo o desenvolvimento do pensamento humano a dialogar com diferentes áreas a partir do campo do inconsciente. Estou me referindo ao inconsciente coletivo, o perene movimento da vida, o criativo, o que sempre será não consciente em sua maior parte.

 

Com dignidade científica C. G. Jung conseguiu sustentar a provocação do entorno na descoberta de fatos psicológicos novos, suportando o sofrimento e a solidão de quem está à frente de sua época, enquanto colegas escolheram se agarrar aos galhos secos da razão. Postura essa de Jung que sempre o acompanhou, mas que se impôs fortemente em 1913[3] . No entanto, ainda hoje, aguardando um desenvolvimento maior da consciência, alguns dos temas levantados por Jung permanecem desconhecidos, aprendidos pelas beiradas, deixando muito a desejar quanto à aplicação que se vê por aí. Circunstância essa que lhe gera um lugar incômodo de obscurantismo, valendo salientar que o desconhecimento é nosso e não dele. Mesmo sem ser esse o intuito de Jung, foi obrigado na ocasião a criar uma ‘escola’, que denominou de Psicologia Analítica, pois em nossa conjuntura se costuma ‘classificar’ tudo para melhor absorver. Hoje entendemos bem o cuidado de Jung com o que se torna instituído ao ver no que se transformaram os Institutos com seu nome, em “carreirismo”, como classificou Marie-Louise von Franz[4] na entrevista a um jornal brasileiro.

 

Mesmo entre os profissionais da área, ainda se ouvem falas sobre a dificuldade de entender a Obra de C. G. Jung, já que ele não se ocupou ‘de propósito’ em formatar catálogos para os fenômenos psíquicos, prendendo-os a conceitos fechados. Ele sempre soube de esses fenômenos serem dinâmicos por si só, portanto, o máximo que se pode fazer é descrevê-los em seu movimento, cuidando para mantê-los no contexto em que acontecem. Não podemos nos esquecer do mundo inconsciente ser vivo, tal qual a natureza que enxergamos lá fora. Por isso também não há roteiro para o processo de individuação, que é o acontecimento da vida em seu sentido de integralidade e desenvolvimento em cada pessoa, projeto esse que estamos todos incluídos, estejamos ou não conscientes disso. Também não há definição pronta para os símbolos que aparecem nos sonhos, visando uma interpretação causal e fechada. Estudamos uma série de sonhos de alguém e a partir das ocorrências da vida desse sonhador, mesmo que aja paralelos na história da humanidade para ‘amplificar’ o conteúdo onírico, o entendimento será sempre único. É desse modo que a ciência Psicológica deveria contemplar um olhar mais pela sincronicidade do que pela velha e conhecida ‘causalidade’, que a tudo reduz ao já conhecido. Marie-Louise von Franz expandiu essa ideia junto com Jung, ambos aprofundaram o diálogo com áreas como a Física, a Matemática e a Medicina, especialmente a Psicossomática. Um novo paradigma ampliou as ciências exatas a partir dessas pesquisas. A Literatura e as Artes em geral se beneficiaram também com inúmeros trabalhos de von Franz sobre os contos de fada e de Barbara Hannah na aplicação e estudo do método junguiano - imaginação ativa -, ainda não desenvolvido em sua potencialidade na prática atual da arteterapia.

 

Enfim, há cem anos vem se construindo novos olhares para a ciência. E no século XXI se busca aprofundar ainda mais a descoberta de questões inconscientes, seja a área que for do pesquisador, sabe-se das influências desse sobre o seu experimento. A preocupação de Jung sempre foi a de ser a psique ao mesmo tempo o sujeito e o objeto de estudo da ciência psicológica, podendo fazer com que isso prejudicasse o caminho da Psicologia como ciência. Hoje vemos que muitos cientistas suspenderam a neutralidade e incluíram em seus experimentos a si, a sua situação de observadores, e se deparam com a existência do campo inconsciente – a manifestação do desconhecido que envolve a todos e a tudo – e se deram conta dos resultados científicos dependerem de como se encontra o campo perceptual pessoal. Também cabe a cada um de nós a consciência de que em toda a participação e interação influências imperceptíveis afetam os acontecimentos e o mundo das relações, isto quer dizer em última instância, não há e nunca existiu a posição de neutralidade.

 

[1]Texto escrito e divulgado no Blog “Movimento Junguiano” http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/ em fevereiro de 2013, marcando um século (janeiro de 1913) do início do afastamento de C. G. Jung do grupo psicanalítico, mesmo que a sua saída definitiva do cargo que ocupava na presidência da Associação Psicanalítica Internacional só ocorreu em abril de 1914. (Porto Alegre/RS – BRASIL).

 

[2]Psicoterapeuta de orientação analítica no Espaço Arte-Ciência, www.espacoarteciencia.com.br

 

[3]Ano do rompimento da amizade, já fragilizada, de Jung e Freud, concretizado a partir da visão de libido apresentada por Jung no capítulo O SACRIFÍCIO, Obras Completas C. G. Jung, vol. V – Símbolos da Transformação, publicado pela primeira vez em final de 1912.

 

[4]Entrevista especial dada ao repórter Gilson Schwartz do Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno Ilustrada, em 02 de novembro de 1987, publicada no Blog “Movimento Junguiano” http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/

Conceição Soares Beltrão[1]

Elisa Freitas Machado[2]

Flora Bojunga Mattos[3]

O filme “Um Método Perigoso” (A Dangerous Method – 2011 - Canadá/Reino Unido/Alemanha) do diretor David Cronenberg, também o roteirista junto a Christopher Hampton, que se embasa em sua peça teatral “The Talking Cure”, apoiado no livro de John Kerr (A Most Dangerous Method), impressiona pela sua monotonia, explorando não só uma relação sado-masoquista de Jung com sua paciente na época - Sabina Spielrein - como também a cansativa e desgastada ruptura entre Jung e Freud.

O cineasta nos priva da beleza da dinâmica da anima – imagem do feminino na psique inconsciente do homem – de Jung e especula uma relação triangular e extraconjugal, nos seus ainda não trinta anos, no início de sua carreira de psiquiatra, quando ainda experimentava o método de Freud.

As cenas de sexo entre Sabina e Jung invertem a imagem da subjetividade – apenas fazendo menção numa das cenas vista através do espelho – confundindo as tomadas do grotesco e do conflito interno da paciente como se fosse real.

Apesar de estar reunidos num mesmo trabalho: um talentoso diretor de cinema, o Amor (Eros) e o maior psicólogo do mundo – como Jung é nomeado no filme –; vemos mais uma oportunidade de mostrar a relação de Jung com o inconsciente fugir entre os nossos dedos. Von Franz, no filme “Remembering Jung”, fala do sofrimento de Jung diante das exigências do inconsciente e do conhecimento que dispomos hoje sobre a psique inconsciente, a qual emergiu dessa relação de Jung com o inconsciente.

No filme, “Um Método Perigoso”, a questão central é a infidelidade (Jung/Emma) vivida com a ex-paciente Sabina. Essa temática se repete como já vimos em outro filme “A Jornada da Alma” (The Keep Soul) e em várias biografias sobre Jung. No livro Freud/Jung correspondência completa Jung escreve a Freud: “uma paciente que há anos tirei de uma neurose incômoda, sem poupar esforços, traiu minha confiança e amizade da maneira mais mortificante que se possa imaginar. Resolveu armar um torpe escândalo simplesmente porque me neguei ao prazer de lhe fazer um filho. Sempre procedi com ela como um perfeito cavalheiro, mas perante o tribunal de minha consciência por demais sensitiva não me sinto realmente imaculado, e é isso o que mais dói, porque minhas intenções nunca deixaram de ser dignas. Mas o senhor sabe como são as coisas – mesmo o que há de melhor pode servir ao diabo para a fabricação de imundície. (...) Meu relacionamento com minha mulher ganhou enormemente em profundidade e firmeza.”[4] Meses depois Jung ainda escreve a Freud: “Tenho boas notícias a dar sobre meu problema com Spielrein. Eu vi tudo muito negro. Estava quase certo de que se vingaria, depois que rompi com ela, e só me surpreendi com a banalidade da forma que essa vingança assumiu. Anteontem ela veio à minha casa e tivemos uma conversa muito decente, durante a qual transpirou que o boato que corre a meu respeito não parte em absoluto dela. Foram minhas ideias de referência, bem compreensíveis nas circunstâncias, que lhe atribuíram tal boato, mas desejo me retratar incontinente. Além disso ela se libertou magnificamente bem da transferência e não sofreu recaída (...) discuti com ela o problema do filho, imaginando que falava em termos teóricos quando na realidade Eros se agitava sorrateiramente nos bastidores. (...) Possuído pelo delírio de ser vítima dos estratagemas sexuais de minha paciente, escrevi à mãe dela dizendo que eu não era o gratificador dos desejos sexuais da filha, mas simplesmente seu médico, e exortando-a a libertar-me da mesma. Tendo em vista o fato de que pouco antes a paciente fora minha amiga e gozara de toda a minha confiança, meu gesto foi uma autêntica safadeza que só com muita relutância confesso ao senhor como meu pai. Gostaria agora de lhe pedir um grande favor: que mandasse algumas linhas a Frl. Spielrein, dizendo-lhe que o informei de todo o assunto, e em particular da carta aos pais dela, que é o que mais lamento. Quero dar à minha paciente pelo menos uma satisfação: a de que tanto ela quanto o senhor sabem de minha “perfect honesty”. Peço-lhe mil perdões, foi só minha tolice que o envolveu nesta confusão. ”[5]

A questão a ser abordada é a fidelidade, isto é, a fidelidade de Jung ao inconsciente como ele mesmo escreveu: “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou”, na primeira frase do livro Memórias Sonhos Reflexões, evidenciando a importância da dimensão inconsciente em sua vida. Discorrendo sobre a anima, Jung estende a questão até a problemática da bigamia, e afirma que: se não tivesse entendido a dimensão simbólica dessa realidade, ele teria sucumbido às forças obscuras do inconsciente, à semelhança de tantos outros, e como do próprio Otto Gross.

A dimensão do Eros para Jung representa uma relação com o próprio inconsciente. Esse é o ponto fulcral, porém, esquecido nas especulações sobre a vida de Jung. Neste sentido, lamentamos o foco dado por essas produções, as quais marginalizam a possibilidade de existência do inconsciente. Infelizmente, em nossa contemporaneidade, o mundo simbólico ainda não encontrou lugar. Nesta perspectiva, cabe lembrar que Jung, quando questionado se haveria uma Terceira Guerra Mundial, afirmou que para não ocorrer uma Terceira Guerra Mundial seria necessário que cada um de nós recolhesse a sua própria sombra e isso exigiria uma relação ética, conectada com o centro da personalidade total, o Si-mesmo. Desse modo, urge a necessidade de cada uma/um de nós olhar para a sua própria sombra.



[1] Doutora em Letras, Psicoterapeuta de orientação Junguiana no Espaço Arte-Ciência, www.espacoarteciencia.com.br
[2] Bailarina e Terapeuta Corporal de orientação Junguiana http://www.elisafreitasmachado.com/
[3]Psicoterapeuta de orientação junguiana no Espaço Arte-Ciência, mestre em Psicologia Social

e da Personalidade, www.espacoarteciencia.com.br
[4] Burghölzli-Zurique, 7 de março de 1909, 133J.
[5] Im Feld, Küsnach bei Zurich, 21 de junho de 1909, 148 J.

Flora Bojunga Mattos

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Recebi convite para ser palestrante na II Semana de Ufologia em Porto Alegre com enorme curiosidade de saber como anda o estudo e a discussão sobre os fenômenos ufológicos. Essa foi uma experiência bastante singular, uma oportunidade de mostrar como nós, da Psicologia Analítica, nos inserimos em um assunto ainda hoje tão polêmico, como o da Ufologia.


Minha fala situou-se nos estudos realizados por C. G. Jung, em seu volume (X/4) das Obras Completas, intitulado “Um mito moderno sobre coisas vistas no céu”, no qual ele apresenta uma pesquisa vasta e interessante sobre como o ser psíquico humano lida com o tema da Ufologia. E segui: “Ele se dedicou por 10 anos, coletando relatos, dados, perseguindo a pergunta: ‘os discos voadores são reais ou simples produtos da fantasia?’ e em 1958 organizou os dados coletados nesse livro.

 

Foi após 30 anos, em 1988, que a língua portuguesa brasileira teve acesso numa tradução feita pela editora Vozes.


Nós, profissionais da Psicologia, não nos ocupamos em falar da realidade física dos OVNIs, pois entendemos que esse é um campo específico do conhecimento e aqui devo estar entre estudiosos e pesquisadores do assunto. O que nos cabe é sugerir que a pesquisa siga adiante, pois o que Jung observou e continuamos a constatar também, é que há interesse do ser humano no assunto. Portanto, esse não é um tema indiferente, pelo contrário, mobiliza um grande número de pessoas no mundo. Mesmo sem conhecimento, as pessoas tendem a opinar sobre o assunto. Todas dizem algo, seja o que for, porque esse assunto não lhes é indiferente. Só isso já deveria nos motivar a estudar, porque mexe com as pessoas a ponto de haver uma probabilidade no ser humano do fato desejável de uma realidade concreta dos OVNIs em maior número do que o seu contrário.

 

Mas o que nos compete abordar é sobre o componente psíquico envolvido.

 

Para Jung, mesmo uma pessoa com o pensamento extremamente racional, também para ela, a percepção sempre será acompanhada da fantasia. Por outro lado, uma fantasia, que de alguma forma está se desenvolvendo na psique inconsciente, pode invadir a consciência a ponto de criar ilusões e visões, e se projetar na realidade física.

 

A pesquisa explanada nesse livro por Jung contempla tanto um modo como o outro. Explicando melhor, a visão concreta de algo cria um mito, que acompanha essa realidade e, por outro lado, um conteúdo inconsciente profundo, que chamamos de arquetípico, também pode criar uma visão, que se manifesta tal qual uma realidade física. E o que é mais interessante é a terceira possibilidade explicitada por Jung, a qual denomina de coincidência ‘sincronística’. Ele aqui se refere ao seu conceito de sincronicidade.

 

Sincronicidade é algo que não lida com a causalidade, portanto é acausal, possuindo uma significação que une dois ou mais eventos, os quais acontecem no mundo externo e interno, isto é, no psíquico interior. Esta é uma visão singular formulada por Jung, pois nos mostra como um fenômeno físico pode se relacionar com os processos psíquicos profundos – os arquétipos. Posso citar alguns exemplos, entre eles aquele já tão conhecido do relógio que pára no momento de uma morte.

 

Antes de irmos mais adiante, gostaria de enfatizar que nós somos seres psíquicos totalmente dependentes da cooperação do inconsciente – dessa parcela psíquica que desconhecemos. Sabemos que a maior influência vem dessa camada desconhecida – inconsciente – e que é algo constante em nós, participando de todos os momentos de nossa vida. Mesmo que não saibamos, não percebamos, somos completamente influenciados/as por essa instância inconsciente que pode inclusive atrapalhar nossa atenção, nosso entendimento, e pode ainda, como disse Jung, até interromper a próxima ideia que estamos para expressar ou, ao contrário, contribuir para que percebamos algo além do já conhecido, trazendo ideias novas, novas soluções, propor atos criativos. Enfim, o que quero enfatizar é que a nossa razão, nossa maneira de pensar, de sentir, de perceber, está completamente submersa em nossas fantasias inconscientes, mesmo que não acreditemos nisso, essa influência inconsciente continua a atuar e, talvez, por isso mesmo – na certeza ilusória do domínio da razão -, por esse motivo, principalmente, a interferência do inconsciente pode ser ainda mais forte, maior, como um jeito, uma maneira compensatória de lidarmos com a vida.

 

Para a Psicologia, o que interessa é ‘como’ a psique lida com uma informação, seja ela advinda do mundo físico, seja ela projetada - como uma ilusão - pelo mundo da fantasia. Uma coisa pode estar na minha frente, mas se essa coisa não tem uma conexão comigo, com o meu ego, eu não a percebo. Ao passo que se algo é importante para mim de alguma forma, passo a criar uma imagem psíquica, uma imagem projetada fora de mim. Estou me referindo aqui à projeção psicológica.

 

Além desse modo projetado, posso reconhecer algo fora de mim, quando eu estabeleço uma relação (sincronística) com algo que possuo, sinto e vivencio em minha experiência interna. É assim que faço uma conexão significativa entre o que sinto e experiencio com o que percebo fora de mim, algo que me complementa, algo que forma uma só coisa, isto é, algo que está dentro de mim – em minha interioridade – e algo que está fora de mim – no mundo externo – são uma mesma coisa, uma só coisa, formam uma totalidade.

 

Jung também disse que o que chamamos de ‘parapsicologia’ é a psicologia do inconsciente, pois a psique que é expressa nos fenômenos paranormais nos apresenta a relatividade do espaço-tempo. Quis dizer com isso que o nosso funcionamento psicológico tem uma independência relativa da ‘lei newtoniana’ – da causalidade absoluta –, ultrapassando as noções de tempo e de espaço. Se não fosse assim era impossível termos percepções fora do espaço e do tempo. Sabemos que essas percepções existem, temos exemplos de clarividências telepáticas, de premonições,... são percepções não-espaciais, não-temporais. Isso nos evidencia que as nossas concepções de espaço e de tempo, sob o ponto de vista causal e racionalista, são incompletas. Então, já sabemos que há uma outra ordem para além de, acima de, em outra dimensão, que não existe a extensão espacial, isto é, que o espaço não existe e também o tempo não existe. Por isso temos que lidar com algo de nossa existência psíquica que está fora do tempo, do espaço, pois esses parâmetros são incompletos para entendermos a totalidade dos fenômenos de um modo unificado.

 

Como podemos explicar – usando o determinismo causal, o modelo newtoniano de mundo – que quando estamos profundamente interessados/as em algo, passemos a perceber constantemente o assunto de nosso interesse? Ainda, sem mais nem menos encontremos pessoas ligados a isso? E filmes, e livros, etc., tudo se constelando nesse nosso interesse com uma frequencia que nos causa espanto. Temos aí a presença da ‘coincidência’ com uma insistência notável. É certo que esses acontecimentos não podem ser explicados num sentido causal. Isso foi denominado por Jung de fenômenos sincronísticos, ou melhor, de sincronicidade. Foi como Jung conceituou essas ‘coincidências significativas’, as que aparentemente não possuem uma explícita conexão ou nexo físico observável.

 

Para Jung, ocorrências como aquelas de relógios que param quando uma pessoa morre, copos que quebram ‘espontaneamente’ em momentos em que há a manifestação de grandes emoções, entre outros fenômenos assim, formam os eventos de sincronicidade.
Concluindo, gostaria ainda de mencionar um sonho que Jung teve na época (1958) em que lançou o volume X/4. Este sonho está registrado no seu livro, digamos assim autobiográfico: MEMÓRIAS, SONHOS, REFLEXÕES (p. 279/280). No sonho ele notou que estava em sua casa e avistou, diz ele: “dois discos de metal brilhante em forma de lentes; iam em direção ao lago, por sobre a casa, descrevendo um arco de fraca luz. Eram dois OVNIs. Em seguida, um outro corpo parecia dirigir-se para mim. Era uma pequena lente circular como a objetiva de um telescópio. A quatro ou cinco metros de distância, o objeto imobilizou-se por um instante, e em seguida desapareceu. Imediatamente após, um outro chegou, atravessando os ares: uma pequena lente de objetiva com um prolongamento metálico que terminava numa caixa, uma espécie de lanterna mágica. A sessenta ou setenta metros de distância, parou no ar e me fitou. Acordei, tomado por um sentimento de espanto.” No meio do sonho disse que lhe apareceu a ideia: “Sempre acreditamos que os OVNIs fossem projeções nossas; ora, ao que parece, nós é que somos projeções deles. A lanterna mágica me projeta sob a forma de C. G. Jung, mas quem manipula o aparelho?”

 

Jung já sonhara outras vezes com as relações entre o eu e o self ou si mesmo, que é o centro da psique. Isso nos evidencia que as imagens inconscientes possuem a sua própria realidade, sendo o inconsciente o criador. Isto é, nossa existência real é a inconsciente, assim como é a sensação quando estamos mergulhados no sonho.

 

Para concluir, no livro das CARTAS III, p.54 (12.10.1956 p/ Mr. Barrett), Jung usa a “sábia frase”, como ele mesmo qualifica, do escritor holandês Eduard Dekker (1820-1887), a qual diz assim: “Não existe nada que seja totalmente verdadeiro, nem mesmo esta frase”.

Entrevista feita por Luciano Colella

Analista junguiano em São Paulo e presidente

do Instituto de Estudos de Psicologia Analítica

(Fonte: Jornal "Folha de São Paulo", 08 de junho de 1991)

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"O que mais me impressiona em Carl Gustav Jung é a capacidade que teve de suportar os opostos em si mesmo". Decorridos 30 anos da morte de um dos pioneiros da psicanálise, completados no dia 06 de junho de 1991, o jornal "Folha de São Paulo" entrevistou Dieter Baumann, 64 anos, neto de Jung.

 

Sendo neto ele o conheceu não como "o príncipe herdeiro do império freudiano", tampouco como "o velho sábio de Zurique". Em entrevista exclusiva, Baumann conta lembranças de sua infância, que revelam uma face íntima do avô.

 

Folha - Qual a primeira lembrança que você tem de seu avô?


Dieter Baumann - A primeira lembrança que tenho dele é de quando ele tinha 58 anos e eu 5 ou 6, acho. Eu e mais alguns meninos estávamos em Shafuza, em um grande jardim que era da minha bisavó, tentando fazer um condutor, um tubo, com as hastes de dentes-de-leão. Queríamos que a água corresse através da tubulação e tentávamos encaixar este longo tubo, de vários metros, na bica.

 

Claro que não dava certo. A pressão da água expulsava o tubo.

 

Fizemos várias tentativas. Aí chegou Jung, perguntou o que estávamos tentando fazer e, quando nós explicamos, pegou o tubo, colocou-o dentro de um tanque que havia debaixo da bica, sugou pela outra ponta e depois que a água chegou, pôs a outra ponta do tubo para fora e abaixo do nível da água e a água começou a escorrer. Em outras palavras ele fez um sifão. Assim ele salvou a nossa brincadeira.

 

Folha - Isto é muito interessante, porque simbolicamente a água é associada com freqüência aos conteúdos do inconsciente e à energia psíquica.


Baumann - Exatamente por isso que me deve ter vindo à mente. Isto me leva a uma outra lembrança. Quando eu tinha oito anos, estava passando férias com ele em Bollingen e lá fora, perto da torre, ele tinha um sistema fluvial de rios em miniatura. Ele cavou uma região encharcada e encontrou algumas pequenas fontes. Escavou então pequenos canais por onde a água destas fontes pudesse correr.

 

Como eram várias fontes, acabou formando um verdadeiro sistema fluvial em miniatura que ele manteve e cuidou por muito tempo. Marie-Louise Von Franz chamava essas atividades do Jung de "waterworks" (trabalhos com água). Uma outra lembrança também associada aos canais é de quando eu já tinha 20 anos. Eu o estava ajudando na manutenção deles. É claro que, às vezes devido à movimentação, a água ficava muito turva. Nesse dia, porém, havia um dos afluentes que estava com a água particularmente límpida. Esta água límpida ao entrar na turva criava um desenho muito bonito, uma espécie de nebulosidade, mas límpida. Então eu disse a ele: "Olhe para isto", e apontei-lhe o desenho. Ele olhou e disse: "sim, isto é influência" (influir). Estas lembranças levaram-me a perceber uma das suas características marcantes que era esta união do pensamento concreto e abstrato com o simbólico.

 

Folha - Jung continuou seu trabalho intelectual até o fim da vida?

 


Baumann - Bem, praticamente o último trabalho que ele escreveu foi o seu artigo em "O homem e seus símbolos" e isto foi cerca de dois meses antes de morrer. Lembro-me dele nesses dias, escrevendo no terraço da sua casa.


Folha - E sobre a relação de Jung com Freud, você se recorda de algum comentário que ele tenha feito?


Baumann - Lembro-me apenas de que ele me contou uma vez que, quando escreveu "Transformações e Símbolos da Libido" - posteriormente passou a se chamar "Símbolos da Transformação" -, ele sabia que este livro lhe teria custado a amizade de Freud. Ele tinha comentado isto com minha avó. Isso o desgostou muito, mas ele tinha que escrever aquele livro.


Folha - O que você lembra do interesse de Jung em relação à parapsicologia?


Baumann - Estes assuntos não lhe interessavam por si mesmos. O seu interesse voltava-se para o significado destes fatos, fazia parte de um interesse mais geral pelas relações entre o corpo e a alma.

 

Em particular através da sua descoberta da sincronicidade, na qual, digamos a realidade física e a realidade espiritual se encontram.

 

Por exemplo, lembro-me de um fato muito interessante que ele contou que ilustra bem o seu tipo de interesse. Jung estava em Bollingen com Hans Kuhn. Estavam andando fora da torre, conversando. Jung teve um pensamento no qual concluía que o cristianismo não pode vencer o paganismo e vice-versa, e que ambos teriam que morrer para que se criasse algo novo que contivesse os dois e fosse além dos dois. Nesse exato momento encontraram uma cobra morta. Ela tentara comer um peixe muito grande e ficara sufocada. Assim o peixe (que é uma alegoria tradicional do cristianismo) matou a cobra, e a cobra (que é do paganismo) matou o peixe. Isto aconteceu em 1935, 15 anos antes de escrever o seu trabalho sobre a sincronicidade.

 

Folha - Depois de ter sido fundado o Instituto Jung, como ele via o movimento da psicologia junguiana?


Baumann - Sei que ele não se sentia muito contente que o colocassem num pedestal. Marie-Louise von Franz disse-me uma vez que Jung não queria fundar uma escola e nem ter seguidores mas sentia-se muito satisfeito se o seu trabalho pudesse estimular outras pessoas a se dedicarem ao seu próprio trabalho criativo.


Folha - Uma agressão a Jung que de vez em quando vem à tona é a que o acusa de um suposto anti-semitismo. O que você diria a respeito?


Baumann - Isto é terrível. Continuam sempre insistindo nisso. Existe um livro escrito por E. A. Bennet, "O que Jung realmente disse", no qual ele esclarece definitivamente toda esta questão. Assim, se alguém insiste nisto certamente não está de boa fé. Claro que Jung observou o nazismo como fenômeno psíquico. Posso dar um testemunho pessoal a respeito. Lembro-me de que quando estourou a guerra, no dia 1º de setembro de 1939, estávamos em Bollingen e fomos chamados por uns vizinhos que tinham um rádio, para ouvir aquele discurso demagógico de Hitler. Lembro-me de como Jung ficou profundamente indignado e irritado e expressou isso de um modo muito claro.

 

Lembro também claramente de como ele, durante as refeições, comentava o que estava acontecendo na política e sempre se expressou de uma forma claramente antinazista. Sei também que ele ajudou muitos judeus na época. Ele fez um seminário na Alemanha, em 1935, no qual se lê, nas entrelinhas, claramente a sua posição contrária ao que acontecia.


Folha - A psicologia junguiana não estaria adquirindo uma dimensão cada vez mais escolástica?


Baumann - Sim, é verdade. Mas eu sempre vejo aqui e acolá pequenos grupos não-oficiais que se formam. Eu já dizia 30 anos atrás que a psicologia junguiana deveria ir para as catacumbas. Fui muito criticado por causa disto porque, por um lado, parece importante que seja difundida, mas quando se vê o uso que algumas pessoas fazem dela, é muito triste. Eu tenho o privilégio de poder me comunicar com vários pequenos grupos deste tipo. Creio que quando conseguimos estas trocas, não oficiais, sem pretensões institucionais, então teremos algo positivo. Mas creio que também quando há instituições as coisas poderiam ir bem se as pessoas envolvidas percebessem que isto é um compromisso com o mundo. Mas tão logo se acredite que esta instituição é uma coisa em si mesma, então isto vai mal.


Folha - O que mais o impressiona na obra de Jung?


Baumann - Neste momento, digamos que é a capacidade que teve de suportar os opostos em si mesmo. Aceitando o sofrimento da guerra interna é que se cria a possibilidade de contribuir para a paz. Diria que um dos grandes méritos de Jung foi o de ter reintroduzido no Ocidente o pensamento antinômico, já que, se alguém suporta os opostos em si mesmo, permanece consciente, e assim, serve à completude. Senão, a outra metade é projetada no inimigo, dando início às guerras. Jung diz que se alguém tem um conflito profundo, o importante é tentar participar dos dois polos do conflito, e assim lentamente poderá vir à tona um novo símbolo que os reunirá, ou estará acima ou abaixo dos dois polos. É a lógica de alguém que renuncia à prepotência de querer apossar-se do mistério, pois, se se tentar simplificar as coisas, identificando-se com um dos polos, ocorrerá a dissociação. É exatamente quando se aceita a dilaceração do conflito é que o risco de uma dissociação é menor. Eu diria que a dilaceração é o oposto da dissociação.

EM MEMÓRIA: Marie-Louise Von Franz, 1915-1998
Considerações sobre o adeus por Daryl Sharp*


Tradução Conceição Soares Beltrão e Flora Bojunga Mattos, revisão de Susan C. Brown

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“Para as pessoas presentes, quando a urna será colocada na terra, 80 lugares estão reservados nos assentos da frente na igreja. Se você puder estar na rua Lindenberger nº15 às 13h do dia 26 de fevereiro, nós caminharemos juntos para o cemitério.”

Esta foi a última mensagem que recebi antes de partir de Toronto para estar presente à cerimônia fúnebre da Dra. von Franz, planejada para acontecer na Igreja Protestante de Küsnacht, um subúrbio de Zurique. Esta mensagem foi enviada pela Dra. Bárbara Davies, assistente de von Franz nos últimos 14 anos e sua escriturária nos últimos 8 anos.(Em conseqüência da doença de Parkinson, Dra. von Franz, gradualmente foi perdendo a habilidade de escrever e caminhar.)

À rua Linderberger 15 está a despretensiosa e pequena casa onde von Franz morou por mais de 40 anos, a maior parte desse tempo em companhia de sua grande amiga e colega Barbara Hannah, a qual morreu em 1986 aos 95 anos. A casa está numa colina com vista para Küsnacht e o lago de Zurique. Eu fui convidado para ver o quarto, no qual ela tinha morrido na manhã de 17 de fevereiro. Havia uma cama de solteiro, uma escrivaninha com uma cadeira simples, uma poltrona grande e confortável, uma poltrona de couro, uma pequena mesa de cabeceira, uma mesa de leitura e uma estante abarrotada de livros do chão até o teto. Flores por toda parte davam a aparência de um lugar sagrado. Foi dentro deste quarto, me lembro, ela tinha me recebido, diversas vezes, há mais de 20 anos atrás.

Enquanto caminhávamos para o cemitério sob um céu sem nuvens, Bárbara Davies contou-me sobre os últimos dias de von Franz. “Ela se preparou muito bem para deixar esta Terra e falou, alguns meses atrás, sobre estar há tempo demais na ‘sala de espera’. Ela insistiu que não fossem usados procedimentos medicamentosos para prolongar a sua vida. Ela se recusou a ir para o hospital. Ela queria viver as últimas horas em sua casa com os amigos. Ela estava sem medo da morte e estava completamente lúcida até o fim. Apesar de a sua doença progressivamente debilitar a sua saúde física, sua mente estava cristalina até o momento de sua morte.”

Uma multidão considerável tinha se juntado na sepultura. As cinzas de von Franz estavam em uma pequena urna de cobre ao lado da cova no chão, bem ao lado da pedra principal que marca o túmulo de Bárbara Hannah. Dr. Gotthilf Isler, um amigo de longo tempo e associado ao recentemente formado “Centro de Psicologia Profunda de acordo com C.G.Jung e M-L von Franz” leu um breve elogio. O pastor oficiante então baixou a urna para o chão e Dr. Isler lançou uma pá de terra.

Prof. Theo. Abt, um membro fundador do novo Centro, colocou um pote de flores em cima da urna, então lançou uma pá de terra. Ele passou a pá para outra pessoa, que repetiu o ritual. Outros, inclusive eu, aproximaram-se, casualmente, e com a pá ou com as próprias mãos (principalmente as mulheres) juntaram terra e jogaram sobre a urna. Isto durou em torno de 10 minutos, em silêncio exceto por um choro baixinho.

A Igreja Protestante em Küsnacht é imensa, mas o mais impressionante é a sua simplicidade. Existem poucos símbolos religiosos expostos. Chamando a atenção estão as três janelas altas com vitrais de cristal fino em cada lado do altar, o qual nesta ocasião estava coberto por coroas e buquês de flores, enviados do mundo inteiro por pessoas e grupos junguianos. Não houve cerimônia, simplesmente, uma breve recepção feita pelo pastor, em alemão e inglês, aos mais de 800 presentes que lotavam o espaço: analistas, ex-analisandos, amigos, parentes e pessoas da cidade.

Houve três discursos. O primeiro foi em alemão pelo Dr. Isler, que relatou um número de sonhos que von Franz tinha tido, os quais foram importantes em sua vida. (Alguns desses aparecem em seu livro Os Sonhos e a Morte, que eu estava lendo durante o vôo). Ele estava sendo acompanhado por cinco excelentes músicos jovens da Orquestra Tonhalle de Zurique, que tocava o Quinteto Forelle de Schubert. Nos foi dito que este concerto tinha sido escolhido, especificamente pela von Franz, e recebeu aplausos bem merecidos.

Anne Maguire, Doutora em Medicina, analista junguiana de Londres, uma íntima amiga de von Franz por volta de trinta anos, encarregou-se do passo seguinte do funeral em Inglês. Ela também falou de sonhos e eventos compartilhados, enfatizando a função sentimento de von Franz, bem como a sua alta capacidade de insight e a função pensamento como uma espada afiada (=discernimento), seu trabalho pioneiro sobre a interpretação dos contos de fada e seus extensos escritos sobre a alquimia como um paradigma do processo de individuação. Ela fez menção especial para a Dra. Davies e as várias enfermeiras que tinham carinhosamente cuidado de von Franz durante seus últimos anos.

Dr. Roy Freeman do ETH (Instituto Federal Politécnico) falou brevemente de seu projeto de pesquisa que já tinha dados coletados, relacionando os sonhos e sincronicidade, graças ao generoso legado de von Franz.

Era sabido que von Franz não queria que ficássemos tristes com sua morte e, por isso, ela tinha providenciado uma celebração maravilhosa. O pastor disse-nos “todos vocês estão convidados para ir à Casa Paroquial, no espaço comunitário no outro lado da rua, para comer e beber e ficar em ‘alto astral’ por sua memória”.

O serviço terminou com uns poucos momentos de oração silenciosa. Ao sair da igreja, na soleira da porta, curvei-me para pegar uma caneta esferográfica Pilot preta. Eu tomei este achado como um sinal que eu deveria escrever sobre minha experiência (e usei aquela mesma caneta para os primeiros rascunhos deste relato).

Do lado de fora, as pessoas se juntaram para consolar umas as outras, saudando velhos amigos e fazendo novos. Esta convivência conjunta continuou na sala comunitária, onde um suntuoso buffet e um aparente interminável suprimento de vinho suíço reviveu nosso espírito e selou a ocasião com alegria. “Marlus” – como von Franz era conhecida pelos seus amigos – certamente estava lá. E eu estava muito feliz também.

Eu saí dessa reunião em companhia de Bob Hinshaw, um velho amigo e editor da Daimon Books, que tinha me enviado pelo correio eletrônico notícias pela manhã da morte de von Franz. Nós passamos a noite em vários estabelecimentos ao longo de Niederdorf (um bairro de vida noturna em Zurique), debatendo sobre ela e seu trabalho assim como nossos próprios questionamentos. Foi um apropriado fim para um dia que tinha iniciado com o coração apertado – uma confirmação que a vida continua. Durante a semana seguida ao funeral, eu tinha relutado com a idéia de ir ou não. Bob tinha me encorajado para estar lá, profetizando que eu não me arrependeria de fazer uma longa viagem, e ele estava certo.

Pessoalmente, eu sentirei falta dela profundamente. Ela me acompanhou durante meus anos de treinamento no Instituto de Zurique nos anos 70, e mais tarde ela se tornou um membro honorário muito bem quisto do Inner City Books. Próxima a Jung, o espírito dela me guia em tudo o que eu faço. Nós nos sentimos privilegiados de ter publicado cinco de seus livros, incluindo sua biografia de Jung. Apenas meses atrás, ela ofereceu-nos um sexto (O Gato: um conto de redenção feminina), o qual Inner City publicará no próximo ano.

Além da perda para a comunidade junguiana, nós devemos ser gratos por ela ter deixado excelentes trabalhos. O seu legado, certamente, será que ela apreciou na mensagem de Jung e fez o máximo para passar adiante. Além disso, porque ela não era apenas uma seguidora ‘cega’ (sem um pensamento próprio) de Jung, ela fez sua própria marca, pôs seu inimitável carimbo sobre a psicologia junguiana e sobre o que ela ensinou.

J. Gary Sparkes, analista junguiano em Indianópolis, na página da internet dedicado à memória e valorização de von Franz, expressou influência dela sobre ele como:

“Seu brilhantismo desafiou meu limite na melhor forma de aprendizado da habilidade analítica. Seu intelecto era penetrantemente afiado, contudo esta força era baseada no amor e não no poder. Assim sua exigência por competência nunca era sentida como pressão, embora ela pudesse ter a força de um furacão. Ela costumava dizer: Olha esta civilização. A sua história deve ser compreendida em profundidade para fazer justiça ao sofrimento do espírito humano.”

“Eu sempre senti que eu tinha sido introduzido, através do rigor, a uma excelência pela qual há tempo eu estava ávido de fome. Quem não ia querer realizar isto, e quem não ia querer cooperar? Foi a primeira vez que eu senti que a autoridade está a serviço da essência da vida. Antes de tudo eu recordo a intensidade e humanidade de seu espírito criativo, o qual queimou direto ao centro, inspirando-me uma reavaliação de tudo. Ela era exigente em função de uma resposta bastante analítica para as condições atuais. Este desafio é algo do qual eu queria fazer parte.”

Sim, e eu também.

* Estudos em Psicologia Analítica por Analistas Junguianos, Daryl Sharp, editor e redator geral

Jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, de 02 de novembro de 1987.
 

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PSICANALISTA REÚNE KANT E I-CHING - Por Gilson SchwartzEspecial para Folha de São Paulo

 

Marie-Louise von Franz fala sobre a possibilidade de se abrir espaço para a irracionalidade da ciência e sobre o poder do acaso.

Nada mais comum, depois das derrapadas de um ato falho ou mesmo diante de uma descompostura alucinada, que ouvir alguém abrir parênteses para dizer: “Freud explica”. Mas como qualquer outra marca registrada de nossa época, esse anúncio luminoso pode tanto ofuscar quanto esclarecer. Há muito mais entre o falo e o vaso do que imagina nossa vã psicologia.

Em 1906, com 31 anos, Carl Gustav Jung experimentava a vertigem da ciência. Advertido por dois professores alemães contra sua persistência em ficar ao lado de Freud, defendendo-o, atitude que colocaria seu “futuro universitário” em perigo, Jung respondeu: “Se o que Freud diz é verdadeiro, ficarei com ele. Pouco me importa uma carreira que silenciasse a verdade e mutilasse a pesquisa”. Apoio incondicional à ciência e à pesquisa, mas defesa de Freud apenas no caso de sua teoria ser verdadeira. Jung não chegou, afinal, a negar a verdade da teoria freudiana das “neuroses causadas por recalques ou traumas sexuais”. Entretanto, movido por outro ânimo, Jung lutou contra a conversão daquela verdade num dogma. Que as teorias psicológicas virem dogmas não é novidade. Basta contar o número de “igrejinhas”, cada uma cultivando a sua “verdade” (freudianos, kleiniano9s, lacanianos, junguianos etc.).

Marie-Louise von Franz é discípula de Jung, mas abomina a “escola junguiana”, o Instituto, o carreirismo. Prefere reunir-se, sem verbas sem cargos com um grupo de estudiosos dispostos a verdade. Aos 72 anos, é a única sobrevivente do círculo íntimo de trabalho que existiu em torno de Jung. Vive numa pequena casa em Kusnacht, cidade próxima a Zurique, na Suíça – onde, aliás, está instalado o Instituto Jung, à beira do lago. A casa de von Franz fica afastada desse instituto que ela já não freqüenta. É uma casa simples de jardim abandonado. Na biblioteca, entre livros de psicologia, história, antropologia, destaca-se uma enorme estátua esverdeada do Buda indiano.

Marie-Louise von Franz conhecer Jung em 1934. Ela, aos 19 anos (ele com 59), já tinha uma cultura filológica e filosófica suficiente para colaborar com o mestre na tradução de textos do grego, latim e sânscrito, necessários para a pesquisa sobre a alquimia que Jung então desenvolvia. Mas apenas em 1951, quando se publica “Aion”, o nome de Von Franz aparece como autora de uma interpretação das visões da mártir Santa Perpétua. Entre 1955 e 1957 a colaboração chega ao cimo, com a publicação de “Mysterium Coniunctionis”, estudo sobre “a separação e a reunião dos opostos na alquimia”. O terceiro e último volume, de autoria de Von Franz, contém o texto, a tradução e o comentário psicológico de um tratado de alquimia atribuído a São Tomás de Aquino (Aurora Consurgens). Eis a cifra renovada da vertigem: buscar mundos fundadores do racionalismo moderno as pistas do inconsciente. Um dos aspectos do pensamento de Jung especialmente prolongados pela obra de Von Franz é o estudo do simbolismo dos números. Em (Número e Tempo) (1970) esse simbolismo traduz um elo entre a psicologia do inconsciente e a física moderna. Esse elo envolve o conceito de “sincronicidade”. É como se todos os acontecimentos do tempo histórico fôsse reunidos numa identidade objetiva e transcendental que, entretanto, se revelaria em alguns momentos casualmente significativos. É o acaso significativo, aquelas coincidências, sonhos, premunições que nos colocam em contato com uma realidade dita “oculta”. Esse acaso que explica e orienta como no jogo do “I-Ching”, só pode ser apreendido quando ultrapassamos a fronteira segura da explicação causal. Von Franz tem desbravado esse território multidimensional, com a colaboração de físicos, biólogos e historiadores. O conceito de “sincronicidade” como outros ligados a obra de Jung, parece impregnado de irracionalidade. Certamente não se reduz aos modelos explicativos tradicionalmente usados na ciência moderna, porque exige ao mesmo tempo vontade de conhecimento e consciência dos limites da racionalidade. Essa trilha ambivalente, que procura combinar opostos irredutíveis, (racional-irracional, macho-fêmea, quantidade-qualidade, matéria-espírito) define um tema atualíssimo. Vide (as controvérsias vazias que, inclusive no Brasil, dominam a cena cultural. Merquior acusa o machismo de irracionalismo, Rouanet perde a paciência com os pós-modernos, Chauí exorcisa as competências.

 

Ao vencedor as batatas. Mas essa luta não tem vencedores ou vencidos, ela é o espelho, a projeção da participação e do controle limitados de cada um dos interlocutores no processo de democratização brasileira. O debate sobre racionalidade x irracionalidade, não surge por acaso agora.

 

Ou talvez, seja um desses acasos significativos. Intelectuais de diferentes inspirações ideológicas disputam a definição da linguagem da transição, dos termos da construção do futuro desta sociedade. E nada mais antigo, nas sociedades humanas, que é essa procura de elo racional entre o presente e o futuro. A obra de Jung e a reflexão de Von Franz sobre o nosso (tempo) podem ajudar novos caminhos ou, no mínimo, a entender porque as encruzilhadas do labirinto ficam repentinamente bloqueadas.


Folha Quais as transformações contemporâneas do conceito de tempo e como ela se relaciona com o conceito da causalidade?


Marie-Louise Uma reflexão a partir da filosofia de Kant esclarece que a causalidade não é um fenômeno objetivo, mas uma das formas com que enxergamos as coisas: “por causa disso, ocorre aquilo” na verdade, as duas coisas acontecem e nós fazemos a conexão. A causalidade é uma categoria de nossa mente ou da nossa forma de pensar. Mesmo padrão comportamental dos animais está sintonizado “se tal coisa acontece, comporto-me desse modo”. É um conceito com raízes portanto, bastante profundas, mas não é tudo. Sabe-se na mecânica quântica que nem tudo é explicado de modo causal. Há fenômenos comprovados apenas estatisticamente, e há por assim dizer lacunas onde a causalidade não funciona. O novo conceito de “sincronicidade” criado por Jung, não joga fora a causalidade, mas preenche aquele vazio ou lacuna. Ao invés de usar a expressão “não causal”, Jung optou por uma expressão positiva, “sincronicidade”. Há algo mais se manifestando.
 

Folha A idéia de “sincronicidade”, entretanto, associa-se a processos de ação como no “I-Ching”.


Marie-Louise Todo conceito novo tem, na realidade, raízes históricas. As raízes históricas da “sincronicidade” são mágicas. Além da causalidade, a humanidade sempre lidou com mágica, povos primitivos têm fazedores de chuva e Xamãs. Mas essa é a mentalidade primitiva. A noção de “sincronicidade” dispensa essa referência à mágica, substituindo-a por um conceito muito mais disciplinado. É um conceito que dá conta de uma manifestação temporária e pontual da totalidade significativa.


Folha Qual seria um bom exemplo real e atual de “sincronicidade”?


Marie-Louise Usando a sua linguagem de economista, pense nas pessoas que especulam nos mercados financeiros. Ela tem um comportamento mágico, usam amuletos, acreditam em dias bons em oposição a dias negros. A especulação está permeada de pensamento mágico. Em outras palavras, a realidade empírica da economia mostra que na especulação está em jogo um fator irracional que tem um aspecto psicológico.


Folha O conceito de “sincronicidade” poderia ser aplicado a outras disciplinas das ditas ciências humanas?


Marie-Louise Trata-se de um conceito realmente básico. Poderia ser usado, por exemplo, numa revisão da história. Escrevi um artigo sobre a deusa Nikér, da vitória. A vitória militar não é apenas uma questão racional (mais soldados, mais armas). Os alemães perderam a batalha do Marne, na primeira guerra mundial por acaso: uma determinada ordem não foi seguida.


Folha A outras correntes filosóficas contemporâneas que procuram reconstruir a noção de racionalidade sem cair no determinismo. Habermas, por exemplo, insiste no diálogo e no consenso como formas de superação da racionalidade estritamente técnica. Como relacionar esse tipo de tentativa à visão de Jung?


Marie-Louise A diferença de Jung é que ele entra com o conceito de inconsciente. Outros chamam-no “irracional” e então o racionalismo com referencia ao dialogo, ao sentimento e etc. Jung dizia que há fatores muito mais profundos, ligados a força criativa do inconsciente. Isso é novo e provoca muitas reações, pois as pessoas têm medo. Quando você fala em diálogo, a manipulação ainda é possível.

 

Mais ainda surge a esperança de aperfeiçoar essa manipulação: “e se sentarmos juntos para fazer psicodrama poderemos superar as dificuldades”. Mas para Jung é preciso render-se, a “dificuldade” nunca será superada. A “sincronicidade” não pode ser manipulada. Assim, Jung promove uma derrota completa da racionalidade. Mesmo assim há uma possibilidade de manipulação no conceito junguiano. Se você tem uma atitude positiva frente ao inconsciente, ele se torna muito mais benevolente. Senão pudéssemos manipulá-lo em absoluto não haveria psicoterapia. A partir de uma atitude consciente, frente ao inconsciente, a “sincronicidade” pode trabalhar positivamente para o paciente, ele é curado. Eu diria que não se pode manipular, mas, tornar o contato com o inconsciente mais amigável.


Folha Uma sociedade informatizada tornaria essa consciência do inconsciente mais difícil?


Marie-Louise Há um exagero de racionalidade que pode produzir exatamente o seu oposto. Ir muito longe em direção a um extremo gera o extremo oposto, é o conceito de enantriodromia (inversão de uma situação psíquica, G.S.). Por isso vemos a irracionalidade tornar-se cada vez mais presente.

 

Pessoas como Comeine, Kadaf são completamente irracionais. Entre os jovens a música Pop, por exemplo, coloca uma ênfase completa na irracionalidade. Corremos, portanto o risco de cair repentinamente na irracionalidade, num pensamento primitivo e mágico, caótico, ao invés de optarmos pelo meio termo e usar os sistemas de computadores onde é apropriado, evitando seu uso onde não são necessários.


Folha Quais as chances reais da humanidade atingir esse meio termo?


Marie-Louise Para Jung, alcançar esse meio termo da reflexão razoável é sinal de cultura, mover-se na direção oposta é primitivismo e barbárie. Ainda não sabemos se a superação da barbárie será possível.
 

Folha Haveria na história humana um padrão cíclico de oscilações entre o racional e o irracional, ou se pode acreditar num processo evolutivo?


Marie-Louise Eu não sei, minha mente está aberta para essas duas possibilidades. Por temperamento, estou inclinada a acreditar numa evolução cultural muito lenta que transcorre ao longo de milhares de anos, com ciclos de criação e destruição num meio tempo. Mas se considerarmos 10 ou 20 mil anos felizmente tornou-se um pouco mais cultivada.


Folha Há no feminismo um sinal de que a cultura de transforma?


Marie-Louise Essa é uma parte daquela conversão ao irracional. As mulheres têm uma relação com o irracional melhor que os homens, ao não ser que se masculinizem. Uma mulher feminina tem uma inclinação natural ao irracional, a seguir, seus sentimentos ou intuições. Para uma mulher, dizer “não pode te explicar, mas sinto que desejo fazer isso” não é loucura. Para um homem isso é meio louco, ele diz: “querida procure refletir”.


Folha Como o feminismo se enquadra nessa visão, agora que as mulheres ocupam postos de poder?


Marie-Louise Assumir papéis masculinos não é necessariamente uma coisa boa. Sou contra o feminismo porque sou contra a masculinização das mulheres. Sou um outro tipo de feminista, que procura dar mais valor ao “feminismo”. As mulheres precisam resistir ao complexo de inferioridade que levam muitas a imitar os homens. Ao contrário, temo pelos homens do futuro. Pobre homens...


Folha Como afirmar a liberdade diante da irracionalidade e da violência?


Marie-Louise A violência é novamente, parte daquela enantiodromia. Somos muito limitados pela racionalidade e os indivíduos não têm liberdade. Eu passo os verões no parque onde não vejo um policial. Ai surge um equilíbrio entre violência e decência, mas nas cidades você não pode correr pela rua quando quer, toda espontaneidade é cortada, você tem que olhar a luz vermelha, estacionar onde é permitido, e não andar sobre esse ou aquele lugar. Até os táxis estão computadorizados não se pode enganar mais ninguém. Você vive organizadamente da amanhã até a noite. A reação é pegar uma faca e fazer uma loucura.


Folha Isto estaria aparecendo entre crianças e jovens?


Marie-Louise As crianças apenas fazem aquilo que os adultos querem inconscientemente fazer. Se as crianças se brutalizam, isso significa que seus pais não estão conseguindo lidar com sua própria sombra de brutalidade. Os adultos acumulam uma sombra de brutalidade e não querem vê-la. A manipulação das crianças apenas criara uma geração neurótica e criminosa.


Folha A religião seria uma forma válida de conviver com o irracional?


Marie-Louise Religião pode significar duas coisas opostas. Poder ser o ato de ir a igreja, pertencer a uma seita e acreditar em certas coisas e comportamentos. Isso nós não precisamos necessariamente.

 

Pelo menos as religiões existentes são muito deficientes. Mas pode-se entender religião de outra forma, como uma experiência luminosa de um aspecto do inconsciente. Disso nós precisamos muito, prestar atenção as forças irracionais da natureza dentro de nós e no mundo exterior. Dessa religião nós realmente precisamos, na verdade é tudo o que precisamos. Tomar consciência do que se passa nos bastidores. É o que fazemos na psicoterapia junguiana: observar os sonhos e ensinar o paciente a observar seus sonhos e adaptar-se aquilo que seus bastidores irracionais desejam dele.


Folha Como funciona o Instituto Carl Gustav Jung aqui em Kusnach?


Marie-Louise O Instituto local é praticamente anti-junguiano, completamente estéril. Os melhores já se aposentaram. As pessoas erradas assumem as posições de liderança, apenas em busca de dinheiro e poder. Sempre que o poder domina, há esterilidade e degeneração. Mas isso não importa: organizamos um pequeno grupo, desorganizado e sem dinheiro, que funciona muito bem.


Folha Qual a polêmica central entre Freud e Jung?


Marie-Louise Freud via o inconsciente como algo a ser removido e manipulado. Jung via o inconsciente como algo poderoso e criativo que não pode ser manipulado. Jung considera o irracional enquanto irracional, ao invés de racionalizá-lo rapidamente, chamando-o de “sexualidade”.

Obs.: O encontro com Marie-Louise von Franz foi facilitado pelo intermédio de Matheus Ajzeuberg, Mosoko Oki e Leniza Castelo Branco. A viagem à Suíça foi cortesia da Swissair.

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